segunda-feira, 12 de março de 2012

Mulher, futebol, cerveja e Rede Globo (Parte II)

Finalmente consegui finalizar a segunda parte do artigo sobre a tomada de posição da grande mídia em favor da opressão a qual a mulher é submetida em nossa sociedade. Antes, porém, um esclarecimento: os textos específicos de cada assunto contemplado nas páginas do blog (Ócio Criativo, ConsCiência, Filosofarte, etc.) eram pra ser publicados diretamente nas páginas. Acontece que estou tendo uma certa dificuldade para fazer isso. Coisas de neófitos digitais! Esse artigo, por exemplo, era pra ser publicado direto na página Média Mídia. Quando dominar melhor essa ferramenta, organizo os textos de acordo com os assuntos e coloco tudo nas suas respectivas páginas. Por enquanto vou publicando por aqui, na página inicial!
Sem mais delongas, fiquem com o texto "Mulher, futebol, cerveja e Rede Globo" (Parte II)
 
                                                           
                                                       ***


Na primeira parte do texto vimos que alguns estereótipos vão se cristalizando, fixando para a mulher valores, papéis e características considerados “naturais”. Analisaremos agora como a Rede Globo e a propaganda de cerveja reproduzem algumas dessas características, mais especificamente   a delicadeza, o altruísmo e o “instinto materno”.

“Muito além do jardim"
         
           Na manhã da última quarta, dia 07 de março, estava trabalhando num projeto que estou desenvolvendo na Escola Internacional de Aldeia (consultar página Projetos), quando escuto um dos âncoras do Bom dia Brasil, Chico Pinheiro, anunciar ao final de um bloco: “Tem mulher no futebol! Daqui a pouco você vai conhecer a vida das mulheres dos jogadores.” De imediato pensei: “como é que é? O dia é delas e destacam as mulheres dos jogadores? Isso dá um artigo!”. Eis aqui o resultado!
           Depois fiquei sabendo que essa era uma dentre uma série de cinco reportagens apresentadas no telejornal matutino da Globo, dentro das notícias esportivas (o que já dá uma primeira indagação: por que não abrir um espaço só para elas dentro do noticiário?), para homenagear as mulheres, intitulada “As mulheres no futebol”.
            Tive a oportunidade de ver três reportagens, a do dia 07 de março, que, como falei acima, destacava as mulheres de jogadores, a do dia 08, que mostrava as torcedoras e a do dia 09, trazendo “as pioneiras” (as primeiras árbitra, treinadora e presidente de clube). Apesar das três reportagens confirmarem minha tese de que a grande mídia reforça a opressão da mulher na sociedade, resolvi centrar minha análise na reportagem do dia 07, que falava das mulheres dos jogadores, pois ela é bem representativa do que quero defender aqui.
            Comecemos pelo próprio título da série: “Mulheres no futebol”. “estar no” futebol é diferente de “ser do”futebol. O que o título quer sugerir é que por mais espaço que a mulher tenha conquistado espaço no mundo da bola, ela ainda não é parte integrante do universo futebolístico, não constitui um elemento essencial “do” futebol, mas ao contrário, é um elemento acessório, acidental, pois está “no” futebol.
            A vinheta de abertura da série fazia referência ao universo futebolístico: torcida, estádio, bola. No final da vinheta podíamos ver uma enorme bola, envolta no Símbolo de Vênus (aquele círculo com uma pequena cruz embaixo que representa o gênero feminino) em tons cor-de-rosa, claro, para destacar a sensibilidade e a delicadeza feminina. Ora, enaltecer a intuição, a sensibilidade e delicadeza femininas, “significa diminuí-la em relação ao homem, capaz de elaborações intelectuais mais refinadas.”  (Aranha, 2006, p. 138)  
Para ilustrar a reportagem foram convidadas Camile Pasqualotto, esposa de Roger Machado, destaque na lateral esquerda do Grêmio na década de 1990, e Juliana Paradela, esposa de Luís Fabiano, atacante do São Paulo.
A reportagem abordou um estudo que Camile Pasqualotto, pós-graduada em Psicologia do Esporte, desenvolveu sobre a visão que as mulheres de jogadores têm sobre a profissão dos seus maridos e o papel delas em suas carreiras. Uma das conclusões que Camille chegou é que as mulheres dos jogadores abdicam de seus projetos pessoais e passam a viver a rotina deles. Elas também acreditam serem fundamentais para o sucesso profissional do jogador, oferecendo a tranquilidade necessária para um melhor desempenho do atleta.
Por curiosidade pesquisei um pouco e encontrei uma entrevista de Camille para o site Universidade do futebol. Em um trecho, ela diz: “as mulheres acreditam que abrindo mão de suas vidas pessoais e profissionais estão ajudando o marido a aumentar seus ganhos, dando o suporte para todo o restante”.
Ainda que a Rede Globo tente nos convencer de que mulher de jogador não precisa ser tão submissa assim (veja o caso da própria Camille, que não abandonou os estudos, chegando inclusive pós-graduação) o projeto da pesquisadora gira em torno da atividade realizada pelo marido, como, aliás, reconhece a própria Camille na entrevista ao site ao dizer que se interessou pela área de Psicologia do Esporte por acreditar que, com seus estudos, poderia ajudar muito o ex-gremista na profissão de jogador e agora como treinador. Ou seja, a relação apresentada é assimétrica, pois os interesses e atividades da pesquisadora giram em torno da atividade do marido.
Aqui entra a outra convidada, Juliana Paradela. Para ilustrar as conclusões da pesquisa sobre as representações das mulheres dos jogadores, o repórter (me parece que era Régis Resing, não me lembro bem) conversou com a esposa de Luís Fabiano. Típica representante do perfil da mulher do jogador, Juliana abriu mão de um projeto de vida autoral para se submeter à rotina do atacante do São Paulo. Chega, inclusive, a dizer que nos dois momentos mais felizes da sua vida, o nascimento de suas duas filhas, o jogador não pôde estar presente devido às atividades profissionais. Juliana também narrou outro fato marcante, dessa vez não tão feliz assim, quando Luís Fabiano, as vésperas de um jogo importante, ligou para ela no momento em que uma das filhas do casal ardia em febre. Para não abalar o marido, podendo comprometer seu rendimento no gramado, disse-lhe que estava tudo bem, “oferecendo a tranquilidade necessária para um melhor desempenho do atleta”.  A fala de Juliana em dois momentos específicos chamou muito minha atenção: quando Juliana usou o termo “altruísmo” para definir sua postura e quando disse que apesar dos percalços, faria tudo de novo.
Por que será que ao invés de destacar o protagonismo feminino, apresentando exemplos de mulheres que conseguiram, numa estrutura social predominantemente androcêntrica, superar sua condição histórico-social e conquistar sua autonomia, destacam mulheres que abandonam possíveis projetos pessoais para serem “mulheres de jogadores”? Fundamentado em Aranha, respondo: para reforçar o altruísmo feminino, pois “ao atribuir a ela o altruísmo, exigimos o abandono de si; mas, ao torná-la um ‘ser-para-outro’, temos facilitada sua submissão.” (Aranha, 2006, p. 138)  
Não me parece outra a intenção da Rede Globo, ao vender essa imagem como modelo, de reforçar essa submissão. Como a última fala da reportagem foi a de Juliana, dizendo que faria tudo de novo, a Globo ratifica que o padrão a ser seguido é o da mulher que abandona seus próprios projetos e acompanha a rotina do marido.




E aí, mulher? Bebes ou não bebes?

            O segundo exemplo de reforço ideológico da submissão feminina é a propaganda de cerveja. Se fossemos julgar o consumo feminino de cerveja a partir das peças publicitária, seríamos levados a crer que as mulheres não são muito chegadas a uma “loira gelada”. Pra ilustrar o que estou dizendo, destaco duas propagandas, uma mais recente, da Skol, e outra veiculada já faz algum tempo, da Brahma.
Vamos a mais antiga. A propaganda mostra quatro rapazes (onde?) num estádio de futebol, cada um com uma letra desenhada no próprio corpo, formando, quando posicionados um ao lado do outro, a palavra AMOR. As esposas, namoradas, enfim, companheiras, estão (advinha?) em casa assistindo a partida pela televisão. Encantadas, todas suspiram enamoradas pela apaixonada declaração de amor dos jovens torcedores. Eis que chegam mais dois rapazes para se juntar aos quatro primeiros, também com letras desenhadas (as letras “B” e “H”) e se posicionam de uma forma tal que podemos ler a palavra BRAHMA. A declaração de amor, na verdade, era para a cerveja do coração, afinal, a Brahma é a nº 1!
As mulheres, passionais e temperamentais, como a propaganda sugere, resolvem, então, se vingar: “vamos tomar as cervejas DELES!”, bradam.
Se as mulheres têm o mesmo direito de gostar de futebol e irem aos estádios, por que a propaganda põe “eles” e não “elas” na torcida? Se na vida real, tanto as mulheres quanto os homens têm o hábito de tomar aquela cervejinha “sagrada” para atenuar as agruras de uma vida agitada e estressante, por que, na propaganda, o estoque de cerveja pertence a“eles” e não a “elas”?
Agora, a propaganda mais recente. Durante o carnaval 2012 a Skol fez uma campanha publicitária, intitulada Operação Skol Folia, convocando os consumidores da cerveja para se “alistarem” na promoção que levaria o vencedor e mais cinco “amigos” para invadirem os melhores carnavais do país.
Se o “alistamento militar” no Brasil é obrigatório apenas para os homens, não estaria a propaganda já de saída delimitando o público-alvo da propaganda, a saber, o masculino? Se tanto as mulheres quanto os homens brincam o carnaval, por que na peça publicitária em questão “ele” é que é convocado enquanto “ela” permanece em casa lamentando a “sorte” do marido? Por que será que na propaganda aparecem “rapazes” na maior farra com mulatas estonteantes e não “garotas” numa roda de capoeira com capoeiristas “sarados”?
De forma subliminar, ou melhor, de forma explícita, essas duas propagandas exaltam o “instinto materno” (Aranha, 2006) ao aproximar as mulheres mais da natureza, confinando-as ao mundo doméstico, da esfera privada, portanto. “Já o homem se volta para a rua, para o público, como artífice da civilização.” (p. 138) Em ambas as propagandas as mulheres estão no mundo doméstico, na esfera privada, ou seja, em suas casas, enquanto os homens estão voltados “para a rua, para o público”, no primeiro caso, no estádio de futebol e, no segundo, no carnaval.

Para além do futebol e da cerveja
Por tudo que foi dito, concluo dizendo que apesar dos avanços formais (leis e regulamentos diversos) as representações (concepções de mundo, crenças, opiniões, valores, ideologias) e práticas sociais ainda são ditadas a partir do universo masculino.
Não acredito que a emancipação feminina virá porque as mulheres estão praticando atividades culturalmente atribuídas ao homem. A emancipação virá quando as mulheres puderem livremente escolher qualquer ocupação, não por ser uma atividade deste ou daquele gênero, mas porque a escolha se baseou na identidade da mulher e na sua capacidade de reflexão, deliberação e escolha.
É, mulher, a luta não é fácil! É preciso mais do que jogar futebol, tomar cerveja e assistir a Rede Globo para superarmos a histórica dominação masculina que perdura há milênios e que a grande mídia insiste em reproduzir.
Podem contar com o blog Cabeça Bemfeita como aliado, pois ele tá aí é pra isso mesmo, pra desvelar relações de poder não tematizadas e que são encobertas e perpetuadas por agentes diversos, como é o caso dos meios de comunicação de massa.
Beijos pra vocês, garotas, e firmeza na luta, pois há muito ainda para avançar! E, rapazes, procurem exercitar a co-liderança, independentemente das pessoas com as quais dividimos nossos espaços de vivência serem homens ou mulheres.




Referência Bibliográfica

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2006.




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