quinta-feira, 14 de março de 2013

Escola atual: ainda vigiando e punindo


Dando continuidade a série de textos Paideia a Caio e a Ravi, trago hoje sua segunda parte, onde apresento mais elementos para compreendermos melhor a escola que temos, visando apresentar, na próxima postagem, o modelo de educação que comecei a escrever para meus filhos, Caio e a Ravi (e também para a garotada que tenho, e com a qual terei, o prazer de ensinar e, principalmente, aprender).

Um dos objetivos do blog é fazer com que eu busque preencher os vazios e lacunas que foram ficando na minha formação. Todos sabemos que, por melhor que tenha sido nossa formação inicial, é impossível um aprofundamento mais rigoroso e sistemático sobre determinado tema ou sobre a obra de um determinado autor em quatro, cinco meses, tempo médio dos períodos universitários. Isso ainda não é o pior! Muito mais grave é que, quando nos formamos vamos para o mercado de trabalho, diminuindo a possibilidade, pelo menos para a maior parte da população, de dar continuidade aos estudos, pois, presos a uma atividade repetitiva, burocrática, estressante, enfim, alienada, no tempo liberado, só queremos "descansar" para voltarmos "com tudo" para a labuta.

Enfim, estou dizendo tudo isso para justificar que, até antes da escrita do presente texto, nunca li diretamente o autor das ideias que utilizarei no presente texto para fundamentar minha visão sobre a instituição escolar (o que para muitos acadêmicos é inadmissível!), mas, como o Cabeça me obriga a buscar justamente preencher lacunas da minha formação intelectual, nada melhor do que incluir esse pensador como um dos meus parceiros na construção da educação dos meus filhos e começar um diálogo diretamente com ele. Esse pensador é o francês Michel Foucault (1926-1984).

Como só agora comecei a dialogar com Foucault ("diretamente", que fique bem claro, pois, de certa forma já vinha conversando com ele através de outros autores que venho lendo e que foram pelo pensador francês influenciados), mais exatamente através do livro Vigiar e Punir: nascimento da prisão, resolvi chamar para o bate-papo alguém que dialoga com ele há mais tempo: Inês Lacerda Araújo, professora e pesquisadora do Programa de Mestrado de Filosofia da PUC-PR, autora, entre outros, do livro Foucault e a Crítica do Sujeito (Editora da UFPR, 2000).

Foucault: normas e regras sujeitando

e controlando os indivíduos.
Em Vigiar e Punir, livro onde faz "uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar", o filósofo francês Michel Foucault, mostra o lado da norma, das regras, da vigilância e da punição que sujeita e controla os indivíduos, tornando-os peças de uma estrutura social disciplinarmente controlada. Segundo Inês Araújo, no artigo Vigiar e punir ou educar?, presente na edição especial da Revista Educação (Foucault pensa a educação), “nessa sociedade disciplinar, a vigilância e a punição produzem corpos dóceis e capazes. A medicina, com seu discurso científico, acolhido como insuspeito, neutro, é o árbitro para a normalização do comportamento, das condutas, dos desejos.”

Para Foucault, a emergência dessa sociedade da norma, da saúde, da vigilância, que “psicologiza” e “medicaliza” o criminoso e o escolar, é fruto do desenvolvimento do modo de produção capitalista. O crescimento populacional e o aumento da produção industrial fazem com que os mecanismos de vigilância, exame e punição dependam cada vez mais da articulação entre discurso, saber, verdade e poder. Como os indivíduos passam a ser considerados em função da sua normalidade (ou seja, da sua adequação à norma capitalista), “disciplinar” a sociedade passa a ser a palavra de ordem.

Ainda que a disciplina em si não tenha sido forjada na modernidade, pois "muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas", como diz Foucault, a partir do século XVIII ela atinge um refinamento nunca antes alcançado. Rapidamente se expande para a escola elementar, exército, hospitais e para as fábricas, no século XIX.

Segundo Inês Araújo, “na escola (a disciplina), facilitou a implementação generalizada da alfabetização, a localização espacial em carteiras; esse espaço recortado, analisado, permite individualizar e classificar; a disciplina é apropriada para desenvolver aptidões, mas também é essencial para gerir a população, torna-la governável, administrável”

Em meus quase dez anos como professor, em alguns momentos, pedi para meus/minhas alunos/alunas desenharem como viam a escola. Descontando as representações ligadas ao tédio, ao sono, transmissão de conhecimentos e isolamento, parte considerável trouxe como representação da escola a prisão. Sem o saber, eles estavam corroborando a ideia foucaultiana da típica configuração arquitetônica da sociedade disciplinar: o Panopticon. Resumidamente, a ideia é a seguinte: em um presídio, numa torre central, circundada por várias celas, apenas um vigia, com uma visão geral (daí o termo panopticon, dos gregos pan, tudo, e optikós, visão) de todo o presídio, monitora o comportamento de todos os presidiários. Se vocês perceberem alguma semelhança entre o vigia e o papel do professor na escola normatizadora, não é mera coincidência!  

Além das prisões, Foucault analisa outras instituições que possuem espaços disciplinares, tais como a medicina, as indústrias e, claro, as escolas. “Na escola se tem a divisão em classes homogêneas, crianças alinhadas, o lugar marcado tendo a frente o mestre; os escolares são distribuídos conforme a idade, o sexo; as tarefas e matérias têm níveis crescentes de dificuldades; há distribuição por mérito”, diz Inês. Além de ser uma “máquina de aprender”, o espaço escolar também converte-se em espaço de vigiar, hierarquizar e premiar.

Em tal modelo escolar, a formação e a disciplina são obtidos por meio de castigos e sanções, normalmente distribuídos através de provas e exames cujos objetivos são descrever, analisar, medir, comparar, adestrar, corrigir, normalizar e excluir.

Na instituição escolar os procedimentos disciplinares funcionam, ao mesmo tempo, como mecanismos de ajuste do comportamento (filas, carteiras, horários) e como operadores pedagógicos (provas, testes, exercícios, treinamento de habilidades, avaliação do desempenho). Sendo assim, de acordo Inês Araújo, “forma-se um tipo de saber sobre o indivíduo que permite situá-lo com relação aos demais; o problemático, o indisciplinado, e não é só suscetível de punição corretiva, como é alvo de um saber que o qualifica. Esses recursos ‘pedagogizadores’ reproduzem na escola o poder, e seus efeitos, que funciona em discursos, práticas e saberes.”

Ao analisar a gênese e o uso do sistema escolar moderno, não é intenção de Foucault “abolir” a escola, antes, ele pretende mostrar “a proveniência e os usos daquelas ‘pequenas’ técnicas e dispositivos de saber e poder que passam despercebido por aqueles que fazem a história da pedagogia moderna”, pondera a professora.  Foucault jamais negaria a importância da disciplina intelectual, da dedicação aos estudos, do conhecimento e da educação, nem que a formação das crianças e adolescentes se limitem às articulações entre poder e saber. “Neste sentido, a disciplina intelectual, o rigor, a aplicação do pensamento sobre o próprio pensamento são essenciais para a formação, para o aprendizado inteligente, para raciocinar, refletir, argumentar, analisar, obter resultados”, continua Inês. Essas operações não são simples técnicas de repetição, reforço e reprodução, mas, ao contrário, impulsionam o aprendizado.

As ideias de Foucault, portanto, devem ser tomadas como uma denúncia contra a violência dirigida ao indivíduo sujeitado, como uma recusa a esse modelo que, infelizmente, ainda prevalece na maioria das escolas. Como diz Inês Araújo, “é preciso imaginar e criar novas políticas do corpo, que proporcionem autonomia, reconhecer o caráter inacabado das instituições, (o que dá chance para a inovação, para a criatividade), e, principalmente, abrir caminhos para a crítica, para a denúncia das práticas que sujeitam.”

Sem uma subjetividade livre, autônoma, não há pessoas críticas, criativas, comprometidas ética e politicamente. Apenas em escolas não burocratizadas, onde a punição e o controle passam a segundo plano, a formação verdadeira, a capacitação e o aprendizado crítico e produtivo poderiam acontecer.    

É sobre essa escola diferenciada que falarei na próxima postagem!

Zebé  Neto
Professor e Ensaísta