quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Letramento digital e cidadania: mais Machado de Assis e Joyce, menos Jobs e Gates


Olá, amigo leitor, amiga leitora, do Cabeça, tudo certo?

Infelizmente não tenho conseguido manter um intervalo constante entre uma postagem e outra. Tentei, mas não deu! Na verdade, demorei a perceber que é praticamente impossível manter uma regularidade e um rigor cronológico (característicos do trabalho industrial) para uma atividade essencialmente criativa, como a escrita (é claro que tem uma galera que escreve mecanicamente ou que tem que produzir certa quantidade de texto por semana, mas não esse tipo de produção textual a qual me refiro).  

Nossos corpos e mentes são tão condicionados ao ritmo do trabalho alienado, fragmentado, seriado, que, inconscientemente, estava tentando imprimir para o blog o ritmo característico das sociedades industriais (e contra o qual o próprio blog se insurgiu!).

Assumindo, então, que a criação textual (ou qualquer outra atividade criativa) não deve ser engessada por imposições temporais, o intervalo das postagens, a partir de agora, obedecerá ao tempo natural da sua escrita, dentro, obviamente, do tempo liberado que atualmente me é disponível – que não é muito, pois não gozo (ainda) de ócio criativo, já que sou assalariado – e à minha motivação para escrever, que só vem crescendo depois que o Cabeça nasceu.


De qualquer forma, como pesquiso e estudo quase que diariamente, acredito que seja possível manter (vou me esforçar para!) uma média de duas postagens por semana, sempre intercalando um texto voltado especificamente voltado para a formação continuada do professor/educador e outro direcionado para a reflexão e crítica sobre as áreas de interesse do blog, como tecnologia, eixo temático da postagem de hoje.

Antes de deixar vocês com minhas considerações sobre letramento digital, permitam-me apresentar a programação da Cabeça Bemfeita TV e da Rádio Cabeça dessa semana. Resolvi colocar na programação apenas produções que tive acesso através da internet, já que é sobre inclusão digital que pretendo falar.
(Quem preferir, pode ir direto para o texto "Letramento digital e cidadania: mais Machado de Assis e Joyce, menos Jobs e Gates", mais abaixo.) 

Como a maioria dos leitores do blog são professores (acredito eu), acredito que a Série de Diálogos O Futuro se Aprende, que aconteceu no dia 10 de setembro de 2012, em São Paulo-SP, trará informações importantes para os docentes que se preocupam com sua formação tecnológica. Entre as palestras, temos a do professor da UFPE e colaborador da OJE (Olimpíada de Jogos Digitais e Educação), Luciano Meira, que fala sobre tendências, desafios e oportunidades de utilização das tecnologias na educação. Os créditos da programação de hoje devem ser dados para o designer e músico HD Mabuse, que disponibilizou a informação no facebook em um dos dias em que entrei.

Já na grade da Rádio Cabeça, resolvi homenagear dois sites que me mostraram coisas bem interessantes recentemente: o Na Lupa e o Jamendo.

Através do Na Lupa conheci Blitz The Ambassador, projeto de Samuel Bazawule que nasceu na República do Gana (1982) e mudou-se, em 2001, para os EUA. No som do cara influências das clássicas bandas de rap A Tribe Called Quest, De La Soul, The Jungle Brothers e Public Enemy, misturadas a batidas africanas.  Fela Kuti é também outra grande influência. As imagens que acompanham o vídeo do disco Native Sun compõem um belo documento visual sobre elementos da cultura (música, dança, vídeo,comportamento, etc) africana.
"Accra city blues" (versão de estúdio)

"Accra city blues" (Montreal Jazz Festival 2011)



As outras dicas foram selecionadas por mim num site sediado em Luxemburgo, chamado Jamendo. No Jamendo  dá para ouvir e baixar músicas livremente. Pra quem gosta de música independente, dos mais variados estilos (pop, rock, metal, blues, jazz, reggae, rap, indie, experimental, eletrônica), dá pra achar algumas coisas bem legais. Os norte-americanos do Lorenzo´s Music fazem um som com pitadas de blues, rock, ritmos latinos, new wave, soul. Percebemos no som da banda influências de Morphine, Tom Waits, TV on the Radio, entre outros.
Outra banda que descobri através do Jamendo e que também está na programação da Rádio Cabeça, são os italianos do Sicilian AV Project, que promovem um diálogo entre literatura, música, artes visuais e ilustrações. A galera faz uma mistura de drum&bass, eletrônica e jazz.
Fechando a programação, temos o Fluxo, banda de rap formada em 2005 fruto da parceria dos cariocas Arthur Moura e Wallace Carvalho. Após experiência em bandas (que tinha Wallace no vocal e Arthur na guitarra), passaram a trabalhar em dupla. O Fluxo possui quatro álbuns: “Relatoatividade” (2006), “O Som do Tempo” (2007), “Prévia do Amanhã” (2008) e "Visões Remanescentes"
Antecipando possíveis críticas de teor etnocêntrico, nacionalista ou xenofóbico, do tipo: “Esse Zebé não defende a cultura nacional! Não deu nenhuma dica de MPB ou música nordestina!”, farei  uma observação sobre minhas escolhas de vertente nitidamente pop.

Além de gostar de alguns ícones da cultura pop, um dos objetivos do blog é oferecer uma leitura crítica sobre a produção cultural contemporânea, procurando identificar o que há de interessante dentro de uma oferta vertiginosa de opções, na maioria das vezes de qualidade estética questionável.

Sou pernambucano, amo minha cultura (considero a música feita em Pernambuco uma das mais criativas e originais que existem), amo a música brasileira, os músicos daqui estão entre os melhores do mundo. O primeiro texto dedicado à música aqui no Cabeça, inclusive, teve como eixo a A Nova Musica Pernambucana. Ora, também sou educador, trabalho com crianças e adolescentes que têm na comunicação de massa (principalmente as infovias) seu principal veículo de informação e, o que é pior, de formação. Sendo assim, acredito que seja função do professor/educador promover uma reflexão crítica sobre os conteúdos veiculados pelas diferentes mídias, procurando, assim, identificar os interesses morais, políticos, ideológicos e econômicos por traz do “lixo pop” despejado no mundo pela industria cultural.   
Em tempos de Lady Gaga, One Direction e Luan Santana, nós, professores, temos o compromisso de apresentar para nossos estudantes alternativas ao discurso massicante e hegemônico dos diferentes meios de comunicação.
Para quem quiser aprofundar a discussão sobre tecnologia e sobre  a "sociedade informática", na página (Cons)CIÊNCIA E TECNOLOGIA  estão disponíveis três textos: um falando sobre a relação entre técnica, tecnologia e ciência (texto 1), outro sobre as características da sociedade informática, resultado da segunda revolução técnico-industrial (texto 2) e um último trazendo algumas considerações sobre letramento digital (texto 3).

Agradeço a vocês que dedicam uma parte do tão precioso, e cada vez mais raro, tempo, para dialogar. Gostaria de ouvir vocês também. Estão gostando? O que deve ser mudado? Fiquem à vontade para comentar. O retorno de vocês é muito importante!  

Gostaria de agradecer especialmente a Lucas Delaqua, do Na Lupa, pela força dada no início de minha aventura no ciberespaço. Valeu, cara!

Ufa!!! Depois dessa enorme introdução fiquem finalmente com o texto:


Letramento digital e cidadania: mais Machado de Assis e Joyce, menos Jobs e Gates
Não sei se por pertencer à chamada geração X  ou por ser oriundo das classes menos favorecidas (como vocês sabem, nossos hábitos e consumos culturais dependem da nossa situação histórico-social concreta), o certo é que nunca fui um entusiasta das novas tecnologias da informação e da comunicação.

Fruto de puro preconceito, durante boa parte da minha vida apenas percebia a tecnologia pelos seus aspectos negativos. Ingênua e romanticamente, considerava que os avanços tecnológicos desumanizavam e potencializavam o processo de alienação e reificação (“coisificação”) do sujeito contemporâneo, mais do que trazia benefícios.

Como consequência do meu amadurecimento intelectual, venho revendo minha relação com a tecnologia e atualmente estou em pleno processo de “letramento digital”. As possibilidades de aprendizado, de diversão e de trabalho oferecidas pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs) têm me ajudado muito na construção e desenvolvimento dos meus projetos pessoais e profissionais.

De acordo com Serafim, letramento digital é "a capacidade que tem o indivíduo de responder adequadamente às demandas sociais que envolvem a utilização dos recursos tecnológicos e da escrita no meio digital." (SERAFIM, Lúcia. Letramento digital na sociedade do conhecimento. Disponível em http://www.algosobre.com.br/cultura/letramento-digital-na-sociedade-do-conhecimento.html [07/11/2012]). Dentro desse contexto, venho desenvolvendo critérios para utilizar crítica e eficazmente a tecnologia, sabendo quando e por que utilizá-la, ampliando, assim, o exercício da cidadania.

No texto de hoje, que por sinal inaugura a página (Cons)CIÊNCIA E TECNOLOGIA, defenderei a ideia de que, para que nós, formados no paradigma tradicional (fundado na fragmentação, na transmissão, na unilateralidade, na abstração, no enciclopedismo e na descontextualização) possamos exercitar uma cidadania adaptada aos desafios contemporâneos, precisamos dominar e utilizar, competentemente, conhecimentos tecnológicos básicos.
Antes de mais nada, permitam-me apresentar minha própria experiência, através de uma breve linha do tempo, com a tecnologia, para ilustrar o posicionamento por mim assumido, qual seja, que é fundamental o domínio da tecnologia para participarmos mais ativamente do “jogo” social.


Só por uma questão de “sincronia semântica”, consideremos, inicialmente, a tecnologia como “o conhecimento utilizado na criação ou no aperfeiçoamento de produtos e serviços”. Sendo assim, o escopo do termo tecnologia abarca praticamente todas as atividades humanas. (Medeiros e Medeiros, 2010, p. 10).

Supergame CCE VG-2800: primeiro
e último vídeogame deste que vos
escreve
Meu histórico com a tecnologia começa com livros e TV (para toda família assistir “sentada no sofá da sala”, só para lembrar Tom Zé), ainda na infância; um videogame (mais precisamente um Supergame, quem foi criança ou adolescente em meados da década de 1980, deve se lembrar desse console da CCE, versão mais em conta do Atari), um walkman e HQ's, na puberdade; na sequência, da adolescência até a idade adulta, vieram o cinema, o rádio, as fitas K7’s (gravadas em lojas alternativas de discos no centro do Recife ou mesmo em programas segmentados das rádios FM, entre elas, Cidade, Transamérica, 89 FM e Universitária, como Novas Tendências, Rock Report, Let’s Rock, Cidade Dance Club, Mangue Beat, entre outros), os vinis e os CD’s.


Basicamente, prezados leitor e leitora, esses foram os meios tecnológicos através dos quais me mantive “antenado” com o mundo durante mais de 20 anos.

Até que, nos idos de 2006, não consegui resistir mais e me rendi ao computador.  Por uma necessidade profissional (até então, eu, que sou Professor de Filosofia, entregava os originais, de provas ou de atividades, manuscritos) passei a digitar meus documentos e, pasmem: enviá-los por email! Meu primeiro correio eletrônico, portanto, data dessa época.
Já entre 2008 e 2009, superei a simples utilização de editores de textos (como Word e Power Point) e de receber/enviar emails e passei a consumir também áudio (MP3) e vídeo através da World Wide Web.

Finalmente, chegamos a 2012, e esse é um capítulo à parte, pois representa o “auge” do meu envolvimento com a tecnologia de informação e comunicação. Desde o final de 2010, depois de minha saída da escola Mater Christi, vinha alimentando a ideia de criar um blog para manter contato com a garotada que em sete anos de casa aprendi a amar.

Passados pouco mais de um ano, em 29 de fevereiro de 2012, nasceu o Cabeça Bemfeita, blog pensado e escrito por mim para, além de encontrar velhos e novos amigos e amigas, organizar e sistematizar as informações e conhecimentos que venho adquirindo depois que passei a administrar minha própria formação continuada.

Não demorou e vieram na sequência uma página pessoal no facebook (que, timidamente, venho movimentando com mais frequência, chegando, inclusive, a entrar três dias consecutivos na última semana!) e, mais recentemente, uma página do Cabeça Bemfeita, também na rede social criada por Mark Zuckerberg, visando um contato mais dinâmico e direto com os leitores do blog e a busca de novos parceiros para um diálogo crítico, reflexivo e, principalmente, afetuoso, sobre temas que nos interessam.

A partir do momento em que rompi com os paradigmas nos quais havia sido formado e superei o preconceito e a ignorância com relação à tecnologia, tenho experimentado uma participação social mais ativa nos diferentes espaços onde compartilho com outros sujeitos a responsabilidade da construção dos valores e normas éticas, políticas e estéticas.

O meu paulatino e constante aprofundamento nas mídias digitais tem sido acompanhado de uma participação mais efetiva nas, chamadas por mim, “Ágoras contemporâneas”. Como vocês sabem, a Ágora era a praça pública onde os gregos, com base nos princípios de isonomia (igualdade de direitos) e isegoria (igualdade na fala), se reuniam para discutir sobre os assuntos (justiça, obras públicas, leis, economia, cultura, etc.) ligados à vida da cidade (pólis).

Para mim, são “Ágoras” a família, a escola, o trabalho, jogos coletivos, comunidades de investigação, grupos de amigos, redes sociais, ... Resumindo: onde existirem pessoas que discutem, deliberam, refletem, decidem, fazem escolhas e agem coletivamente, os ideais da “Ágora” estão presentes.   

Se hoje procuro meus/minhas amigos/amigas no trabalho, ou mesmo se começo a utilizar as redes sociais para buscar um diálogo com aqueles/aquelas que são referências em áreas que alimentam meu sentir e pensar sobre o mundo (arte, ciência, comunicação, tecnologia) devo muito as tecnologias da informação e comunicação que vêm me ajudando a promover uma síntese criativa de sentimentos, ideias, saberes, conhecimentos, atitudes, procedimentos e competências que venho buscando construir.

Contudo, não nos enganemos: meu caso particular é fruto mais das minhas disposições, personalidade, contexto sócio-cultural e econômico, visão de mundo, valores, resumindo, das minhas experiências singulares, do que de um projeto emancipador de sociedade.

Como qualquer conhecimento ou atividade, a tecnologia não foge da dimensão ética da experiência humana. Seu uso social estará sempre condicionado aos valores hegemônicos em dado momento histórico. Como os valores predominantes a partir da modernidade são o individualismo, a competição, a exploração, a alienação e a exclusão da grande maioria da humanidade da produção e consumo de bens e serviços, observamos que os avanços tecnológicos estão a serviço dos grupos privilegiados que dominam e controlam os saberes, os procedimentos e as competências necessárias para a produção tecnológica.

É importante também frisar que o simples “saber utilizar” os formidáveis recursos tecnológicos atualmente à disposição não significa, necessariamente, ser um usuário crítico e competente das mídias digitais. Uma coisa é ter seu olhar guiado por critérios próprios, ser capaz de discernir entre o que é relevante ou não, o que é verdadeiro ou falso, e outra bem diferente, é utilizar as novas tecnologias acriticamente, seguindo o que é ditado pela indústria cultural.
Para muitos estudiosos da cultura contemporânea, vivemos uma espécie de “cegueira” pelo excesso de informação. Antes, a dificuldade estava na escassez de acesso à informação. Hoje, o problema é a ausência de critérios para saber o que é pertinente diante da banalização da informação.

Finalizo, lembrando para aqueles que ainda permanecem à margem do “admirável mundo novo” das tecnologias de ponta (e para aqueles/aquelas que acham que ser incluído digital é postar fotos e links para vídeos do youtube), que a exclusão digital (e, consequentemente, da cidadania) a que a maioria da população está submetida, decorre muito mais do não domínio de competências básicas para o exercício da cidadania, como a capacidade de leitura crítica e reflexiva de textos de diferentes estruturas e registros, por exemplo, do que propriamente ao acesso mecânico aos recursos tecnológicos.

Será que a maioria dos 70,9 milhões de brasileiros que acessaram a internet em setembro (segundo Instituto Ibope Nielsen Online) possui "uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas” e de “princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes dar sentido” (Morin, 2011)? A julgar pela “estatística catastrófica” que o professor Luciano Meira (UFPE) compartilhou na Série de Diálogos O Futuro se Aprende (em cartaz na sua Cabeça Bemfeita TV) de que apenas 10% dos estudantes que concluem a Educação Básica demonstram um letramento adequado em Língua Portuguesa e Matemática, a resposta é não.

Só passei a mim incluir digitalmente (meu letramento digital, assim como toda minha formação, é autodidata) quando resolvi desenvolver e aprimorar duas competências pilares de todas as outras: as competências leitora e escritora.
Para mim as coisas começaram a mudar quando percebi que antes de pensar em mergulhar na linguagem tecnológica deveria voltar-me para as tecnologias básicas de leitura e escrita. A minha inserção no mundo digital é uma consequência direta, portanto, do meu processo de pesquisa sobre a língua.
Por tudo o que foi dito, prezados leitor e leitora, deixo-lhes a seguinte questão: não estaria na hora de procurarmos sermos primeiro Machado de Assis ou James Joyce, para só depois tentarmos ser Steve Jobs ou Bill Gates?
Zebé Neto
filósofo e escritor