quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Paideia a Caio e a Ravi (ou Manifesto pela Escola do Século XXI)


Minhas primeiras palavras em 2013 são de agradecimentos. Meu muito obrigado a todos e a todas que fizeram da primeira parte do manifesto que publiquei no final de 2012 o texto mais visitado nesse um ano de vida do Cabeça Bemfeita. Valeu a força, pessoal! Isso só aumenta nosso compromisso em oferecer um espaço de formação dialógico, crítico e reflexivo.

Gostaria muito de já ter publicado em 2013, mas, como não é novidade para quem me acompanha há mais tempo, não gozo de “ócio criativo” (uma das metas que persigo) para me dedicar a atividades não remuneradas (como a apreciação e a produção artísticas, por exemplo). Realmente não é nada fácil cuidar de duas figurinhas espertas e ativas, como são meus filhos, Caio e Ravi, sem babá (tanto por questão ideológica, quanto financeira); ser professor (que significa ter de dar conta de uma rede complexa de saberes que envolve o trabalho docente); e, ainda, ler textos de diferentes estruturas e registros e escrever, atividades necessárias para o exercício literário que representa para mim o Cabeça. Sem falar que nos últimos dois meses estive voltado para o processo seletivo ao mestrado em educação pela UFPE (continuo considerando o autodidatismo a melhor opção de formação, mas, dentro do meu processo de profissionalização, comecei a sentir a necessidade de estar perto de quem reflete sistematicamente sobre a educação, algo difícil de se encontrar nas escolas, além disso, o peso da autoridade legitimada pela academia fará com que minhas ideias sejam mais consideradas).

Caio e Ravi: destinatários do meu projeto
de educação

No entanto, a despeito de todas as dificuldades, apresento hoje o texto “Paideia a Caio e a Ravi”, um primeiro esboço do que penso ser a educação ideal para os meus filhos, e que retoma e complementa as questões discutidas no texto “Pare a escola que eu quero descer! (ou Manifesto pela Escola do Século XXI)”. Se não bastasse tudo isso, a postagem de hoje também marca o aniversário de um ano do Cabeça.



Por falar nisso, nem parece que já se foram doze meses desde que resolvi romper com minhas resistências com relação à tecnologia e investir no meu letramento digital. Nesse tempo passei por intensas experiências, algumas positivas, outras nem tanto, mas todas fontes de aprendizado e amadurecimento. Sem medo de errar, aprendi nesse ano, impulsionado pelo investimento no meu letramento digital, muito mais do que na minha última década de vida (acho que até nas duas últimas, mas, para não exagerar, fiquemos só com a última que já tá de bom tamanho!).

Tantas mudanças não poderiam deixar de influenciar na concepção e no formato do blog. A maioria das alterações serão compartilhadas nas próximas quatro postagens como forma de comemorar esse primeiro aniversário. A primeira e mais evidente mudança é com relação ao novo design, mais sóbrio e dinâmico. Outra mudança importante, diz respeito as páginas do blog. Nesse primeiro ano do Cabeça, abri algumas páginas com o objetivo de discutir vários assuntos que me interessam, como filosofia, arte, ciência, tecnologia e comunicação. No entanto, devido a escassez de tempo para dar conta das diferentes áreas contempladas, resolvi, nessa nova fase que se inicia, suprimir algumas e fundir outras.  O mesmo vale para a página "SOBRE", na qual apresento o blog, que voltará na próxima postagem, revista e reformulada. Além das páginas, a Cabeça Bemfeita TV (espaço onde compartilho vídeos que trazem temas, conceitos e problemas ligados a linha editorial do blog) também está sendo reformulada. O resultado vocês conferem a partir da semana que vem. Apenas a programação da sua Rádio Cabeça (espaço onde compartilho os sons que fazem minha cabeça) se manteve. Essa semana fiquem com a galera do SoulJazz Orchestra, big band de afro-soul-soul-jazz beat canadense e que também tá na batalha por um mundo menos injusto. Para quem não sabe, a seleção dos clipes exibidos é feita automaticamente pelo youtube, sendo minha interferência apenas na sugestão das palavras-chave.  Como a música Kapital  (que acho bem legal) não foi selecionada, mando ela agora pra vocês. Quem curtir, pode sacar mais sobre a banda no site http://www.souljazzorchestra.com/bio.html.



Diferentemente da primeira parte do Manifesto pela Escola do Século XXI, que foi publicada de uma só vez, a segunda será dividida em quatro partes, não só porque a maioria dos meus leitores e leitoras (acredito, eu) não possui muito tempo para ler, mas também porque eu não gozo de muito tempo para escrever.  

Também peço a compreensão de vocês para a existência de possíveis equívocos e erros (notacionais e/ou conceituais), ou mesmo para algumas análises superficiais. É que, como hoje é o último dia do mês de fevereiro (mês de aniversário do blog), e praticamente só tive ontem e hoje para escrever, resolvi publicá-lo mesmo sem ter tido tempo para maiores revisões.  Fiquem à vontade para nos ajudar, apontando nossos limites e equívocos.    

Por enquanto, é isso. Volto semana que vem trazendo a segunda parte do texto “Paideia a Caio e a Ravi” e com mais novidades sobre o funcionamento do Cabeça Bemfeita 2013. Aguardem!

Fiquem agora com o início da segunda parte do Manifesto pela Escola do Século XXI e até lá!

Zebé Neto
    filósofo e professor de filosofia  
   

Paideia a Caio e a Ravi (ou Manifesto pela Escola do Século XXI)


O filósofo grego Aristóteles escreveu sua Ética a Nicômaco com objetivo de registrar sua concepção moral. Eu, Zebé Neto, filósofo pernambucano, escrevi minha Paideia a Caio e a Ravi, um registro (inicial) sobre a educação ideal (no sentido de ser uma “ideia” de educação, ou seja, uma representação teórica de um modelo adequado de educação) que venho construindo para os meus filhos, Caio e Ravi.

Diferentemente do estagirita (que na obra composta por dez livros assume o papel de um pai interessado pela educação e felicidade de seu filho) não pretendo colocar a razão acima das paixões, antes pretendo construir um modelo de educação que busque o equilíbrio entre a razão (que percebe, sente, compreende e age movido pelas paixões), e as paixões (que, sendo melhor compreendida pela razão, podem ser mais intensamente experienciadas).

Assumindo minha responsabilidade com esses dois seres que não tiveram a liberdade de escolher existirem ou não, me coloquei a missão de primeiro me educar para depois, educar meus filhos. Como o projeto de todo indivíduo e da humanidade é inconcluso (aquele porque a morte chega e esta porque o “projeto” da humanidade se caracteriza, justamente, pela abertura, pelo porvir), até o final da minha existência física (sem nenhuma conotação religiosa) me empenharei em me autoformar para me aproximar ao máximo da identidade que julgo ser o modelo ideal de pessoa, pois só assim poderei educar meus filhos nos valores e princípios que considero os mais elevados: a sabedoria, a justiça, a coragem e a prudência.

O texto Paideia a Caio e a Ravi, cujo objetivo é complementar o Manifesto pela Escola do Século XXI, está dividido em cinco partes que, por sua vez, serão publicadas nas próximas quatro postagens.  

Hoje, como primeira parte, publico algumas considerações sobre o conceito de paideia, para isso me apoiando na obra clássica "Paideia: a formação do Homem Grego”, de Werner Jaeger.  Nas próximas postagens virão, respectivamente, a segunda parte, onde retomo a discussão sobre a instituição escolar iniciada na primeira parte do Manifesto, visando resgatar o fio condutor que levará a terceira parte, onde abordo as principais características de um projeto de educação crítica, criativa e libertária, o qual poderia ser adotado pela escola que se queira capaz de formar sujeitos dentro da perspectiva de paideia por mim defendida; e, por último, concluo o Manifesto pela Escola do Século XXI apresentando algumas ações efetivas que poderiam ser o germe de uma proposta pedagógica com mais qualidade social.

I. Paideia: a formação do ser humano

Poderia ter chamado o presente texto de “Ética a Caio e a Ravi” ou “Política a Caio e a Ravi”, pois, para mim, toda educação é um projeto ético e político (ainda que os agentes, muitas vezes, não tenham clareza disso). Também poderia tê-lo chamado de “Bildung a Caio e a Ravi”, pois a expressão Bildung também traduz o mesmo ideal de formação que a expressão de origem grega “paideia” traz.

Essa última prevaleceu pela razão que narro agora pra vocês.  Como sabem (pelo menos quem me ler com mais frequência), tive uma formação descurada, afinal, também faço parte dos milhões de brasileiros que são vítimas da educação de péssima qualidade oferecida nas nossas escolas (sejam públicas ou privadas). Em função disso, a qualidade do meu trabalho deixava a desejar. Ciente que minhas experiências pedagógicas não logravam êxito devido aos limites de minha formação, passei a investir no meu autoaprendizado constante para poder superar a situação histórico-social concreta na qual estava inserido (naquela época, de alienação). Até esse momento, o pouco da “bagagem” intelectual que tinha, proviera de memorizações e estudos pontuais que realizara com objetivos bem específicos (como passar no vestibular ou fazer provas no ensino superior). O surgimento do Cabeça, há um ano, é um capítulo dentro dessa minha busca de autoconhecimento. O aprofundamento das minhas leituras tem me mostrado a necessidade de buscar um diálogo direto com os próprios autores das categorias e problemas teóricos pelos quais tenho me interessado. Eis, então, minha escolha: sempre ouvi falar sobre “paideia” (o termo e a obra de Jaeger), mas nunca li diretamente o texto. Então, como é proposta do blog ser um espaço de aprimoramento intelectual e profissional, achei relevante ler essa obra que é referência dentro das áreas que tenho me dedicado, a filosofia e a educação.   Feita a justificativa do porquê do nome, passemos ao conceito de paideia.

Segundo Werner Jaeger, historiador e filósofo alemão, a palavra “peideia”, no início do século a.C., significava simplesmente “criação dos meninos”, bem distante do sentido elevado que adquiriu mais tarde. E qual é esse sentido elevado que o termo passou a conotar? É o que veremos.

Para Jaeger, expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação não traduzem realmente o que os gregos entendiam por paideia. Tais termos limitam-se a expressar um aspecto do conceito de paideia, sendo necessário, se quisermos abranger o campo total do conceito, emprega-los todos de uma só vez. (JAEGER, 1995).

No capítulo “Lugar dos Gregos na história da educação”, Jaegar oferece pistas mais consistentes sobre o significado de "paideia" ao abordar os conhecimentos que são a força formativa que está a serviço da educação e que ajuda a formar verdadeiros "seres humanos" (no original, Jaeger fala “verdadeiros homens”, acredito que pelo fato da formação integral grega ser destinada ao gênero masculino, mas também porque no período em que Jaeger escreveu não havia a crítica ao uso do termo "Homem" para se referir a "humanidade").

Tais conhecimentos seriam: a física (no sentido grego de physis, “natureza”), a arte, a literatura e a filosofia. Analisemos a importância de tais saberes.

Segundo Jaeger, “os gregos tiveram o senso inato do que significa ‘natureza’.” (idem, p.10). Para o pensamento grego, as coisas do mundo não são partes isoladas do resto, mas, ao contrário, fazem parte de “um todo ordenado em conexão viva, na e pela qual tudo ganhava posição e sentido.” (idem, p. 11). A esta concepção, Jaeger chama de orgânica, uma vez que nela todas as partes são consideradas componentes de um todo. A concepção do ser como estrutura natural, amadurecida, originária e orgânica, impele o espírito grego para a clara apreensão das leis do real em todas as esferas da vida: pensamento, linguagem, ação e todas as formas de arte. (Idem, 1995).

Como a idealização da arte só aparece no período clássico, o estilo e a visão artística dos gregos surgem, num primeiro momento, como talento estético e “não na deliberada transferência de uma ideia para o reino da criação artística.”  (Idem, 1995, p. 12) O mesmo acontece na literatura, cujas criações dependem “da interação do sentido da linguagem e das emoções da alma” e não do sentido da visão. Até na oratória encontramos o caráter plástico e arquitetônico, caros a escultura e a arquitetura, mas que também encontramos num poema ou numa obra em prosa. 

Jaeger destaca também, como conhecimento formador do espírito humano, à filosofia, “criação mais bela do espírito grego”. Na filosofia se manifesta de forma mais evidente a força que se encontra na raiz do pensamento e da arte grega: “a percepção clara da ordem permanente que está no fundo de todos os acontecimentos e mudanças da natureza e vida humanas.”  (Idem, p. 12). A filosofia, segundo Jaeger, “não é uma simples soma de observações particulares e abstrações metódicas, mas algo que chega mais longe, uma interpretação dos fatos particulares a partir de uma imagem que lhes dá uma posição e um sentido como partes de um todo.” (Idem, p. 12).

Apenas a educação que leve em consideração esses saberes merece, propriamente, ser chamada de formação.

No entanto, adverte-nos Jaeger, "este ideal de Homem, segundo o qual se devia formar o indivíduo, não é um esquema vazio, independente do espaço e do tempo."  (Idem, p. 15). Com isso, Jaeger quer dizer que o tipo de formação considerada ideal está diretamente condicionada pelo contexto histórico-social onde se desenvolve o processo de socialização. Se assim é, qual é o modelo de formação ideal para o mundo atual? Esses conhecimentos destacados por Jaeger como força formativa a serviço da educação ainda são válidos nos dias de hoje? 

Procuraremos responder a essas e outras questões, na segunda parte do texto "Paideia a Caio e a Ravi". Até lá!