sexta-feira, 8 de junho de 2012

Já estávamos "parados", comecemos a trabalhar

        
          Segundo José Auri Cunha, o filósofo grego Platão, na obra A República, estabelece um currículo de educação para o filosofar, cujo objetivo era “propiciar o desenvolvimento do cidadão e da pessoa humana para que adquirisse quatro grandes virtudes, sustentáculo de todas as outras [...]: a sabedoria, a justiça, a coragem e a moderação” (Cunha, 2008, p. 73). Gostaria de começar minhas reflexões sobre a greve que os professores da rede particular fizeram essa semana  falando sobre a coragem. Essa virtude significa “conhecer o que deve realmente ser temido, vencendo o medo fantasioso. Significa também ousadia na busca do que se acredita ser justo. Às vezes, é preciso ter coragem para mudar uma regra injusta, mesmo correndo o risco de ter que se submeter a sacrifícios.” (Cunha, 2008, p. 73-74)
          Mais uma vez, presenciamos a demonstração de coragem dos professores e professoras da rede privada de Pernambuco em enfrentar a sempre presente ameaça de demissão para quem ousa romper com uma regra injusta (a da baixa remuneração da atividade docente), em busca do que acredita ser justo, optando por paralisar as atividades laborais. 
          Em uma Assembleia realizada na sede do Sinpro na última quarta, dia 06 (da qual não cheguei a participar, já que tive que sair de lá às pressas para socorrer minha mãe que machucara a coluna) os professores resolveram aceitar um acordo segundo o qual ficou definido que o valor do piso no Nível I (Educação infantil e Fundamental I) passará de R$ 5,00 para R$ 6,00 a hora aula e o Nível II (Fundamental II e Ensino Médio) de R$ 6,4 para R$ 7,04, enquanto quem ganha acima do piso, receberá um reajuste foi de 7%. Era o fim de mais uma greve. A questão que agora se coloca é a seguinte: os professores terão coragem de na volta às aulas procurarem seus coordenadores e diretores para refletirem sobre os pressupostos filosóficos e pedagógicos que fundamentam suas práticas escolares? Será  que os professores farão perguntas do tipo: “Qual a qualidade do aprendizado? O que estão aprendendo? O que tem garantido a permanência das crianças na escola? Como se dão as relações entre os atores?” (Ensino Fundamental de nove anos: orientações gerais)
            Voltemos à greve. A virtude da “coragem” que sobrou aos professores para paralisarem as atividades faltou em mim. Não para entrar em greve, pois aderi ao movimento. Não tive coragem foi para defender para o grande público, na assembleia realizada no dia 04, minha posição contrária à greve. Calma (falsos) “radicais”, não pensem que considerei a proposta vantajosa, pois para mim são migalhas o que nos oferecem anualmente,  ou que “amarelei” depois de ter sido demitido de duas “grandes” escolas aqui do Recife.  Muito pelo contrário: nessa campanha estou radicalizando (“radicalizar” no sentido da reflexão filosófica, que vai até as raízes dos problemas) cada vez mais minha posição. Simplesmente me posicionei de acordo com as perspectivas teóricas e práticas que venho assumindo.
          Infelizmente, como sou fruto dessa educação de péssima qualidade (gestada no século XIX e que ainda hoje reproduzimos), não tive professores que preparassem os educandos para a aquisição de habilidades fundamentais para o exercício da cidadania, como utilizar competentemente a palavra em grandes públicos (geralmente exigimos apresentações para nossos estudantes, mas nem sempre trabalhamos com eles quais são os procedimentos linguísticos utilizados em gêneros textuais orais, como o seminário, por exemplo).     
          Bem, se ainda não superei certos medos e limitações que trago como herança da minha formação inicial (básica e universitária) descurada, pelo menos consegui superar outras lacunas que me mantiveram preso à uma existência alienada e pouco significativa durante quase toda minha vida. Falo de outras dimensões da inteligência comunicacional que venho construindo: a leitura crítica e a escrita. Pois bem, são elas que a partir de agora utilizo para explicar-lhes o porquê do meu posicionamento contrário à greve.
          Já participei de três, ou quatro movimentos grevistas. Ainda que em tais situações tenha aderido à greve (devido a uma sincera utopia e um idealismo ingênuo), já desconfiava que “parar” não condizia com o processo de educar, algo para mim que sempre se confundiu com a criação, a produção de conhecimentos e atitudes para um mundo mais justo. Sempre me pareceu incoerente com a nossa profissão a ideia de “parar”. Até o termo “cruzar os braços” dá a ideia de trabalho braçal, típico dos operários das fábricas que utilizam mais habilidades mecânicas (o que inclui o trabalho braçal) do que intelectuais. Foi nas fábricas e indústrias, inclusive, onde surgiu a greve como instrumento de luta. Como defendi no texto Trabalho ou emprego? A atividade alienada (alienante) o professor a maioria dos docentes da rede privada executa uma atividade alienada, sendo meros “empregados”, simples executores de uma atividade rotineira, fragmentada e descontextualizada. Se o trabalho, no sentido filosófico, é a ação transformadora da realidade dirigida por finalidades conscientes e deliberadas, visando a satisfação das necessidades materiais e simbólicas, e, como a maioria de nós reproduz ao invés de criar, sou levado a concluir que boa parte dos que suspenderam suas atividades já estava “parada” antes mesmo da greve começar, pois não estavam criando, nem transformando a realidade dada, portanto, não estavam trabalhando.
           Em segundo lugar, ainda que a greve seja um instrumento legítimo de luta, acredito que deva ser utilizado só quando o diálogo se esgotar, e, segundo minha visão, o diálogo nem sequer foi instaurado, pelo menos não no sentido filosófico. Ainda estamos discutindo com base no senso comum, tanto nós, professores, quanto os donos das escola. Para haver de fato um diálogo filosófico precisamos superar o discurso fragmentário, ametódico e assistemático que normalmente pauta as falas dos indivíduos e instituições, visando a construção coletiva de um corpo de ideias que represente a vião dos educadores com relação à sociedade em geral e da educação em particular. Como ainda não possuímos uma ideologia reflexiva e sistematicamente construída (no sentido de conjunto de ideias, sentimentos, convicções, valores, normas e regras que oriente nossas ações, individual e coletivamente), não esgotamos, melhor dizendo, nem começamos o diálogo, portanto, a greve não me parecia ser a opção mais eficaz.   
           Em terceiro lugar, fui contrário à greve porque, por mais paradoxal que possa parecer, ela fortalece muito mais a classe patronal do que a nós mesmos. Acompanhem: todos sabemos que, por mais que digamos que algumas cláusulas são sociais e outras econômicas, todas repercutem na dimensão financeira, pois no sistema capitalista tudo tem seu valor (de mercado, óbvio). Não podemos esquecer que as escolas particulares são instituições híbridas, são empresas e escolas ao mesmo tempo (na quase totalidade dos casos com predominância das primeiras, e, em pouquíssimos, com equilíbrio entre as duas identidades). O foco, portanto, centra-se na clássica oposição maniqueísta entre os proprietários dos meios de produção (donos de escola) e os detentores da força de trabalho (professores). Como o “econômico” monopoliza as atenções, o problema central da desvalorização e aviltamento do professor fica de fora dos holofotes: a educação de péssima qualidade que a maioria das escolas oferece. Se revelássemos para a sociedade que o quê ela compra como ensino de qualidade na verdade não passa de uma educação de massa, normatizadora, alienante e alienada, que trabalha de forma fragmentária, ametódica e assistemática, favorecendo, assim, a reprodução dos valores hegemônicos, entre eles o individualismo, o consumismo e a intolerância, teríamos muito mais avanços no resgate de nossa valorização e dignidade.  
           Por último, e não menos importante, fui contrário à greve porque nossas práticas, individuais (professores) e coletivas (sindicato), são o exemplo clássico da dicotomia entre teoria e prática que prevalece entre nós. Geralmente agimos sem termos uma noção muito clara sobre as teorias que, consciente ou inconscientemente, fundamentam nossas práticas. O exemplo disso é a tática que escolhemos para exercermos o direito à greve. Será que piquetes e carros de som são as únicas maneiras de se exercer a greve? Não existem teóricos que pensaram a greve como instrumento de luta e que poderiam nos ajudar? Em uma breve pesquisa na internet, descobri que a greve de braços cruzados é apenas uma entre outras formas de greve. Não provocaríamos um impacto maior se, ao entrarmos de greve ao invés de deixarmos de ir pras escolas, fôssemos para nossas salas de aula munidos de um currículo alternativo preparado pelo Sinpro abordando questões sociais, éticas, políticas e pedagógicas? Para mim, seria muito mais efeciente se aproveitássemos a greve para suspendermos nossas atividades alienadas e convidar coordenadores e diretores para discutirmos com nossos estudantes e famílias qual é a qualidade da educação oferecida pelos espaços aos quais estamos vinculados. Ao invés de deixarmos de irmos para a sala de aula, deveríamos ir discutir nas próprias escolas o que sentimos e o que pensamos sobre educação, propondo alternativas para os impasses que todos nós enfrentamos.  
         Na verdade, a questão, prezado, leitor,´prezada, leitora, não é ser "a favor" ou "contra" a greve aprioristicamente, mas considerá-la a partir de uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto, levando sempre em consideração os determinantes histórico-sociais que condicionam, em última instância, a maior ou menor eficiência desse recurso de luta política. E na atual conjuntura, da sociedade pós-industrial, ou era da informação, da comunicação e do conhecimento, não vejo a greve como o instrumento mais inteligente (pelo menos para nós, professores) para avançarmos na conquista de nossa emancipação.  É urgente, portanto, contruírmos novas formas de luta. 
         É isso pessoal, sei que todo projeto de mudança é difícil, mas não dá mais para ficarmos presos ao velho discurso da lamentação sem fazermos nada. Como dizem Ramón Flecha e Iolanda Tortajada, no livro A educação no século XXI: os desafios do futuro imediato, "para superarmos a crise da escola, primeiramente devemos deixar de falar do óbvio, justificando assim não fazer opções ou, o que dá na mesma, atuar como Freire, passando da cultura da queixa para a cultura da transformação." (FLECHA, R. e TORTAJADA, I., 2000, p. 28)
          Finalizo minhas considerações, chamando nossa responsabilidade, professores e professoras, para construção dessa "cultura da transformação", pois "os primeiros que devem estar mais preparados cientificamente somos nós, autores e autoras, que fazemos propostas educativas."(idem, p. 28)
         Como filósofo, tenho a obrigação ética e política de contribuir com o esclarecimento dos pressupostos filosóficos e pedagógicos que fundamentam as ações do orgão responsável por representar os interesses da categoria a qual faço parte, a dos professores. A partir da próxima sexta, dia 15, estarei pela manhã na sede do Sindicato dos Professores de Pernambuco para ajudar na construção de novas perspectivas teóricas, mais em sintonia com o mundo atual e que possibilite as mudanças necessárias em nossas práticas e representações. As mudanças na educação e no movimento sindical já são requeridas há algumas décadas. Comecemos agora, com a ajuda da filosofia e das demais ciências, a ressignificar as práticas docente e sindical, visando elevarmos o nível do debate, sob pena de continuarmos desvalorizados e desrespeitados em nossa dignidade. 
         Deixo aqui o convite para todo aquele e toda aquela que já não aguenta mais o ciclo de humilhações ao qual estamos submetidos para unirmos nossas forças e refletirmos juntos sobre novas estratégias de ação. Não deixemos chegar a campanha 2013 para só aí começarmos a discutir sobre nossa valorização e dignidade.
         Prezado, professor, prezada, professora, tenhamos coragem para enfrentarmos as condições adversas, tão comuns à nossa profissão, não apenas em duas ou três assembleias, ou mesmo nas greves, mas cotidianamente nos nossos espaços de atuação, pois é aí que começa o isolamento, o desrespeito e a desvalorização do nosso trabalho. Comecemos a trabalhar de fato.

Zebé Neto
filósofo, escritor e educador
         

 
Referências bibliográficas


CUNHA, José Auri. Filosofia para a criança: orientação pedagógica para educação infantil e ensino fundamental. Campinas, SP: Alínea, 2008.

FLECHA, R. e TORTAJADA, I. Desafios e saídas educativas na entrada do século. In. IMBERNÓN, Francisco. A educação no século XXI: os desafios do futuro imediato. Porto Alegre: Artmed, 2000)

MEC/SEB/DPE/COEF. Ensino Fundamental de nove anos: orientações gerais.