domingo, 7 de dezembro de 2014

Da (minha) tristeza

Nos últimos anos encontrei na escrita uma forma de enfrentar as adversidades e os infortúnios que insistem em me perseguir. Exatamente às 22h30, do último dia 25 de novembro, uma terça-feira, comecei a redigir um texto para tentar trabalhar a dor que naquele momento sentia. No dia anterior, meu pai, nascido em 1943, registrado como Crenivaldo Regis Veloso, mas, mais conhecido como Du, deu entrada na emergência do Hospital Albert Sabin para verificar a causa de um cansaço que já se anunciara há alguns dias, mas que na manhã da segunda, dia 24, ficou insuportável.

Nos primeiros procedimentos a equipe médica constatou a gravidade da situação e não demorou para que meu pai fosse internado. Logo foi identificado um edema pulmonar, agravado por uma pneumonia adquirida na UTI. Para piorar a situação, na sexta, 28, a função renal parou. Imaginem vocês a situação de um senhor de 71 anos, que não era lá tão afeito aos cuidados com o corpo, e que já havia sofrido uma lesão no coração, como demonstrou o cateterismo ao qual meu pai foi submetido. O quadro foi se agravando cada vez mais e, no dia 30 de novembro, meu pai faleceu.

Michel de Montaigne (1533-1592): importante 
apoio para entender esse momento difícil 
Naquela noite que me referi acima, tomado pela tristeza, me deixei paralisar e não consegui redigir um único parágrafo. Já no dia seguinte, pela manhã, quando fui visitar o “velho”, lembrei-me de um pensador com quem gosto de dialogar e que naquele momento poderia, de alguma forma, confortar minha alma: Michel de Montaigne. Não tive dúvida: levei os Ensaios comigo e, no ônibus, no caminho para o hospital, li o texto que me ajudou muito nesse momento difícil da minha vida: Da tristeza. Imediatamente pensei: “Se não reuni condições para escrever um texto próprio que traduzisse esse momento doloroso, publicarei esse texto de Montaigne, que muito diz sobre o meu estado de espírito.”     

É a Seu Du, que teve o privilégio natural de ser o caçula e por isso estimulado pelo meu avô, José Benedito Veloso, para o mundo dos estudos, numa época em que uma formação mais esmerada não estava ao alcance das classes trabalhadoras, que dedico essa que é apenas a segunda postagem do ano do Cabeça Bemfeita  (o nome do blog, aliás, é inspirado na concepção montaigniana da “cabeça bem-feita”, ou seja, de um espírito crítico com princípios e critérios de seleção e organização de informações e conhecimentos, dando sentido aos saberes, concepção antecipada por Montaigne há mais de quatro séculos e hoje meta da educação do século XXI). Vejam a prezada leitora e o prezado leitor, a relação entre as duas postagens: no primeiro texto, defendi a tese de que o solo de onde brota a filosofia é a nossa própria vida, nossa própria existência, que em certos momentos nos coloca desafios que exigem uma reflexão mais radical, rigorosa e de conjunto, ao passo que, nesse segundo, deixo um exemplo concreto de alguém que, motivado pela própria vida, recorreu à filosofia para melhor compreendê-la, justamente a partir do que, ao menos na visão do senso comum, é a sua negação, ou seja, a morte. Vejam também que recorri não a qualquer filósofo, mas aquele para o qual filosofar é aprender a morrer. Eis uma das razões porque cultivo a atitude filosófica: para “aprender a morrer” e entender a ida (ou seria a volta?) daqueles que amo.

Ainda não foi dessa vez, Montaigne, que consegui a ataraxia (a imperturbabilidade do espírito), pois fui tomado pela dor e aflição e tive meus movimentos tolhidos, tendo que recorrer às lágrimas para aliviar a alma e poder recuperar minha ação. No entanto, saiba que, quanto a mim, assim como você, também “sou pouco predisposto a essas paixões violentas; tenho uma sensibilidade naturalmente grosseira e a torno mais espessa ainda e empedernida mediante raciocínios diários”, como esse que ensaiei realizar com a presente postagem. 

É isso, meu pai, obrigado por ter me amado, cuidado de mim e ter me apresentado à música e à filosofia, a primeira, espontaneamente, através do seu gosto musical refinado dentro de um contexto sócio-econômico-cultural adverso e, a segunda, quando perguntei-lhe o que era a filosofia e destes-me dois tomos com alguns diálogos platônicos (livros que datastes no dia do teu aniversário de dezoito anos, em 20 de junho de 1961, e que trago comigo desde os meus dezoito anos), dizendo-me: “Eis a filosofia, filho!”. Sem o saber, fornecestes as duas atividades humanas que nesses dias difíceis estão me ajudando a entender e aceitar sua morte física: a música e a filosofia.

Não se preocupe com nosso “espelho”, pois ele nunca vai se quebrar, já que seus netos, Caio e Ravi, continuarão a refleti-lo. Por falar nisso, amanhã, dia 08 de dezembro, fará três anos que teu neto Ravi está a te refletir. Descanse, ou melhor, "agite" em paz onde o senhor estiver, pois seus filhos, eu e Danda (Veloso), continuaremos a ampliar a ruptura com a facticidade adversa que o senhor iniciou.
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Fico por aqui, deixando um trecho da canção “Além do espelho”, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, que costumávamos cantarolar nos inúmeros encontros festeiros que promovemos no nosso quintal:

“A vida é mesmo uma missão
A morte uma ilusão
Só sabe quem viveu
Pois quando o espelho é bom
Ninguém jamais morreu

Beijos, meu pai e até breve! Por enquanto, sigamos cantarolando a canção da vida!

"Espelho"
(João Nogueira/Paulo César Pinheiro)



"Além do espelho"
(João Nogueira/Paulo César Pinheiro)




Zebé Neto. 

Filho de Seu Du, de Dona Tereza, irmão de Crenivaldo Veloso Júnior (Danda), Professor de Filosofia e Sociologia.

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Da tristeza

Por Michel de Montaigne
Adaptação: Zebé Neto

Sou dos que menos sentem essa paixão; não a aprecio nem a valorizo, embora de um modo geral, e preconceituosamente, os homens a respeitem e estimem. Com ela enfeitem a sabedoria, a virtude, a consciência, mas o adorno é pobre e feio. Os italianos com muito mais razão deram seu nome à maldade, pois ela é sempre nociva, sempre insensata, e também covarde e desprezível: os estoicos a proíbem aos sábios.  

Diz-nos a história que Psamético, rei do Egito, vencido por Cambises, rei da Pérsia, vendo passar a filha, como ele próprio cativa, e que ia buscar água vestida de serva, permaneceu mudo, olhos voltados para o chão, enquanto choravam todos os seus amigos. Vendo logo depois o filho, que conduziam para a morte, conservou a mesma atitude. No entanto, diante de um criado que levavam à tortura, pôs-se a golpear a cabeça demonstrando extrema aflição.

Pode-se comparar esse fato ao que ocorreu recentemente com um de nossos príncipes, o qual recebeu em Trento a notícia da morte do irmão mais velho, sustentáculo da honra e da manutenção da família. Logo depois sabia do falecimento do segundo irmão para o qual, desaparecido o primeiro, voltavam todas as esperanças. Ambas as desgraças ele as suportou com coragem exemplar. Eis que dias mais tarde vem a morrer um dos seus amigos, ao que não pôde resistir. Sua resolução o abandona e ele se desfaz em lágrimas e lamentações, a ponto de observarem que somente ao último acontecimento se mostrara realmente sensível. Na verdade a medida estava cheia e uma coisa de nonada bastara para abater-lhe a energia e provocar um transbordamento de tristeza. Poder-se-ia, creio, assim explicar igualmente a atitude de Psamético, se não acrescentasse a história que Cambises, tendo-lhe perguntado porque motivo ele, que tão pouco se mostrara perturbado com a infelicidade da filha e do filho, tanto se afetara ante a de um amigo, recebeu esta resposta: “É que só esta última tristeza é suscetível de se exprimir por lágrimas; a dor sofrida nos dois primeiros casos está além de qualquer expressão.”

A propósito, vem-me a memória o caso daquele pintor antigo que, no sacrifício de Ifigênia, teve de representar o sofrimento dos diversos personagens segundo o grau de interesse que cada um votava à bela e inocente jovem, e que ao chegar ao pai da virgem já havia esgotado todos os recursos de sua arte. Diante da impossibilidade de dar-lhe uma atitude em relação com a intensidade da dor, pintou-o de rosto coberto, como se nenhuma expressão pudesse ilustrar semelhante desespero. Eis porque os poetas imaginam a miserável Niobé, que depois de perder seus sete filhos viu morrerem as sete filhas, transmudada em rochedo pela sobrecarga da desventura: “petrificada pela dor”, a fim de exprimir essa espécie de embrutecimento sombrio, surdo e mudo que se apodera de nós quando as ocorrências nos esmagam ultrapassando o que nos é dado suportar. E, efetivamente, uma dor excessiva, exatamente porque excessiva, deve estupidificar a alma a ponto de paralisar qualquer gesto, como acontece quando recebemos inesperadamente uma péssima notícia. Somos tomados de espanto, penetrados de pavor ou de aflição e como tolhidos em nossos movimentos até que a prostração suceda o relaxamento. Surgem então as lágrimas e os lamentos que aliviam a alma e como lhe permitem mover-se mais à vontade: “é com dificuldade que afinal recupera a voz e pode exprimir sua dor”.

Durante a guerra do Rei Fernando contra o rei da Hungria perto de Budapeste um dos guerreiros mostrou-se particularmente valente nos combates que se verificaram. Ninguém o reconhecera e todos o elogiavam e lhe lamentavam a sorte porquanto sucumbira na refrega. E ninguém mais do que o Sr. de Raisciac, fidalgo alemão, o engrandecia, entusiasmado com tão rara coragem. Recolhido o corpo, Raisciac aproximou-se como os demais para ver quem era, e ao lhe tirarem a armadura reconheceu o filho. A emoção dos presentes aumentou mais ainda; só ele permaneceu impassível, sem dizer palavra, sem pestanejar, em pé, contemplando fixamente o corpo até que a violência da dor tendo atingido o próprio princípio da vida o derrubasse para sempre. “Quem pode dizer até que ponto arde, arde bem pouco”, dizem os amantes que querem exprimir insuportável paixão.

Da mesma forma nos comove a surpresa de um prazer inesperado: “Logo ao ver-me, ao perceber de todos os lados as armas de Tróia, fora de si, como golpeada por pavorosa visão, se imobiliza. Seu sangue gela, desmaia e só muito tempo depois pode enfim falar”.

Além daquela romana que morreu de alegria ao ver o filho escapar da derrota de Canes; além de Sófocles e Dionísio, o tirano, que também morreram de alegria ao receberem uma boa notícia; e Talma que faleceu na Córsega ao saber dos honras que o Senado de Roma lhe conferira; vimos nesse século o Papa Leão X que, ao ter notícia da tomada de Milão, tão ardentemente desejada, experimentou tal carga de alegria que a febre o assaltou, levando-o à morte. E mais um testemunho comprovador da fraqueza humana tirado dos antigos: Deodoro, o dialético, vendo-se em suas aulas públicas incapaz, de repente, de responder às objeções que lhe faziam, sentiu tamanha vergonha que morreu na hora. Quanto a mim, sou pouco predisposto a essas paixões violentas; tenho uma sensibilidade naturalmente grosseira e a torno mais espessa ainda e empedernida mediante raciocínios diários.

MONTAIGNE, Michel de. Da tristeza. In: ____. Ensaios. Vol. 1, Col. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Primeiro, a vida, depois, a filosofia

Apesar de não postar no Cabeça como gostaria (foram apenas nove postagens em 2013), não abandonei a iniciativa que há dois anos contribuiu decisivamente para a transformação da minha existência, tanto no aspecto profissional quanto pessoal.

Profissionalmente falando, passei de um professor comum, ou seja, um professor mediano, aquele transmissor de conhecimentos, que organiza os conteúdos de acordo com os índices dos livros, que consegue um comportamento adequado dos estudantes utilizando a punição, seja tirando de sala ou diminuindo a nota, entre outros habitus que há pelo menos 200 anos tem caracterizado a atividade docente, para um professor reflexivo ou professor como intelectual transformador, como defendem alguns dos mais influentes pensadores da educação na atualidade, como Isabel Alarcão, Philippe Perrenoud, Edgar Morin e Henry Giroux, que nada é mais do que um sujeito crítico, criativo, capaz de compreender a realidade social, cultural e política, propondo situações de ensino e aprendizagem significativas.

Do ponto de vista pessoal, posso dizer que dei um salto qualitativo, cognitiva, afetiva, ética, estética e politicamente falando. No entanto, como essas dimensões sempre estiveram aquém do que acredito poder realizar dentro delas, ainda estou longe daquilo que pretendo construir como o ideal de uma existência material e simbolicamente satisfatória. 

Com relação a dimensão material, para não me alongar muito nessa introdução, digamos que hoje está melhor do que nos últimos três anos, período em que estive tentando sair do "buraco" em que me empurraram depois de ter sido leviana e injustamente demitido por justa causa de uma tradicional escola particular pernambucana, acusado de promover "guerra virtual" contra a diretora do estabelecimento.

O Cabeça Bemfeita também representou um mergulho mais profundo na filosofia, na arte, na ciência, na tecnologia, na comunicação, enfim, em áreas que me interessam, pois, como assumi o compromisso de escrever sobre tais conceitos, tinha que fazer a "tarefinha de casa" de todo aquele que quer se meter a escrever sobre qualquer assunto: ler muito sobre o que outros sujeitos escreveram sobre esses temas.

Hoje leio e escrevo diariamente, não só pela exigência profissional, mas, principalmente, como necessidade espiritual. Antes do Cabeça, prezada leitora, prezado leitor, as coisas não eram assim. Pra começar, nem projeto rigorosamente pensado e sistematicamente construído, eu possuía. Com relação à leitura e à escrita, o máximo que escrevia eram questões de provas e fichas de estudo.

Por tudo que esse blog representou e representa para mim, e para comemorar seu aniversário de dois anos, irei, na postagem de hoje, discutir com vocês sobre a área do conhecimento que abracei há quase vinte anos, e que há apenas uns dois, três anos, passei a compreender melhor, pois passei a tematizar minha própria vida: a filosofia. Não por coincidência, o cabeça foi o estímulo que faltava para que eu agregasse a pesquisa e o estudo de texto como parte da minha rotina... Já ia dizer "profissional" e "pessoal", mas, prezada leitora, prezado leitor, daqui por diante fica pressuposto que, para mim, "profissional" e "pessoal" não se separam, pois "sou" o que faço, ou, o que dá no mesmo, aquilo que faço (educar-me/educar) constitui meu ser por inteiro.

Bem, já que vamos falar sobre essa forma de pensar colocada pelos gregos há aproximadamente vinte e seis séculos, começamos a falar da vida, mais especificamente sobre a minha vida (por favor, prezada leitora, prezado leitor, como exercício reflexivo, substitua minhas  experiências pelas suas). Minha "vida" (sem querer entrar em questões ontológicas mais profundas sobre tal conceito, entendamos vida como "existência bio-psíquico-social") sempre foi muito problemática: adolescência difícil (e a de quem não foi?), formação básica escolar e universitária deficitária (novamente, a mesma questão: e a de quem não foi?), início de vida adulta atribulada, a grana sempre curta, demora a entrar no mercado de trabalho (só com quase trinta anos tive meu primeiro emprego), falta de perspectiva com relação ao futuro, um certo niilismo aqui, uma certa irresponsabilidade ali, ...

Em certo momento da vida, ali por volta dos trinta e poucos anos, resolvi que precisava fazer alguma coisa pra mudar radicalmente minha realidade. E o que foi que fiz? Me tornei filósofo? Não! Casei!

É, prezada leitora, prezado leitor, o casamento, com as responsabilidades que essa condição acarreta, me pareceu a melhor forma de dar sentido a minha vida (ao menos poderia dar "um" sentido, já que basicamente não havia algum). Foi um passo importante, conheci e me casei com uma pessoa incrível, ganhei mais maturidade (e mais uma amiga), mas ainda faltava alguma coisa que nenhum casamento pode dar: o autoconhecimento. 


Nietzsche (1844-1900): em busca
da superação de si.
Por falar em "autoconhecimento", me permitam, antes de prosseguirmos, compartilhar o que entendo por esse processo de conscientização, ou como chamo aqui, autoconhecimento. Em sentido nietzscheano, me refiro a um processo de passagem da moral de escravos (moral por mim herdada) que nega os valores vitais e que resulta na passividade, transformando o ser humano em animal doméstico ou cordeiro, para a moral de senhores, comprometida com a conservação da vida e seus instintos fundamentais, fundada na capacidade de criação, de invenção, resultando na alegria que, por sua vez, surge como afirmação da potência. Só o fato de estar nesse momento escrevendo esse texto para compartilhar com vocês, já me causa alegria e, consequentemente, a afirmação da minha potência.

Todo aquele que consegue se superar, atinge o que Nietzsche chamou de "além-do-homem" (ou "super-homem"), ou seja, "aquele que transpõe os limites do humano".  



Heidegger (1889-1976): da facticidade
à transcendência do "Ser-aí". 
Também posso falar em autoconhecimento em sentido heideggeriano, pois, também há dois anos, venho paulatinamente superando minha facticidade (minha condição sócio-histórica herdada) e atingindo o estágio superior, chamado por Heidegger de "existenz", a pura existência do Dasein (o "Ser-aí"), ou seja, nós mesmos, que, num primeiro momento somos lançados no mundo de maneira passiva, pois herdamos uma herança biológica e cultural, mas, depois, podemos tomar a iniciativa de descobrir o sentido da existência e orientar nossas ações nas mais variadas direções (transcendência). Dessa tensão entre o que somos (o que herdamos) e o que viremos a ser, como responsáveis pelo nosso próprio destino, provoca uma sensação de angústia, necessária para retirar-nos do cotidiano e nos reconduzir ao encontro de nós mesmos. É exatamente isso que venho fazendo, reconduzindo meu "eu" factual para o "eu" intencionalmente projetado, até o momento meu "projeto final", ou seja, minha própria morte.      

Depois desse esclarecimento, voltemos para minha vida. Depois de alguns anos casado, desfizemos a união e eis que, há aproximadamente quatro anos, reencontro uma grande amiga que, assim como eu, também estava saindo de um relacionamento. Não deu outra: namoro na certa. Acontece que, desse namoro, há três anos e meio nasceu o “cara” que me reconduziria definitivamente a assumir meu eu: Caio, meu primeiro filho. Mas, ainda faltava mais um "empurrãozinho" para que eu mergulhasse de vez em “busca da sabedoria”, e ele veio há dois anos: Ravi, meu segundo filho.

Fui obrigado, então, pela facticidade da minha existência, a pensar no futuro, pois agora não estava mais só no mundo. Tenho dois seres que não pediram para nascer e cujas existências dependem de mim. Meu segundo casamento não mais existe (em compensação retomei a convivência com uma grande amiga que me ensinou muita coisa enquanto fomos casados e que ainda hoje ensina). Minha preocupação momentânea, enquanto "homo economicus" é dar o suporte material que meus filhos precisam, para que o Zebé Neto educador possa garantir que eles desenvolvam as competências, saberes, procedimentos e atitudes necessários para se tornarem sujeitos críticos, criativos, reflexivos, livres e responsáveis, capazes de conduzir suas próprias vidas.

Marías (1914-2005):
a situação concreta
impele à filosofia.
Trago essas questões pessoais, prezada leitora, prezado leitor, para corroborar as ideias do filósofo espanhol Julián Marías de que no momento em que necessita dar razão da situação em que está efetivamente inserido, o ser humano se vê forçado a se propor um horizonte de problemas, se quiser viver autenticamente, ou seja, na verdade. (Marías, 1985)

A minha situação concreta, me obrigou a propor meu próprio horizonte de problemas. A situação na qual me encontrava (e me encontro) me forçou a procurar saber o que tinha que fazer e saber por que e para que tinha que o fazer, visando uma certeza radical.

Como a própria etimologia da palavra indica, um "problema" é um obstáculo, pois o substantivo "problema" significa, em primeiro lugar, "alguma coisa saliente, um promontório por exemplo, mais concretamente, significa um obstáculo, algo que encontro diante de  mim e, por extensão metafórica, o que usualmente chamamos problema intelectual." (Idem, 1985, p. 20)

No entanto, não é por estar à minha frente que uma coisa se converte necessariamente em obstáculo para mim. Como diz Marías:

"[...] tenho diante de mim a parede e ela não me serve de obstáculo mas sim de abrigo [...]. Para que a parede se converta em obstáculo não é suficiente sua presença diante de mim mas é preciso que eu necessite passar para o outro lado justamente através dela. Então ela é efetivo obstáculo na forma concreta em que os gregos chamavam aporia, isto é, falta de caminho para sair de uma situação." (Idem, 1985, p. 20-21)

É mais ou menos isso o que aconteceu comigo: sempre tive consciência da existência das paredes próximas a mim, servindo como abrigo, mas que, principalmente depois da chegada das duas baterias que realimentam minhas energias diariamente, Caio e Ravi, passaram a representar obstáculos para que eu passasse para o outro lado, o lado da sabedoria, da justiça, da coragem e da prudência, necessários para que eu possa formar meus rebentos dentro desses princípios.

E como encontro em minha circunstância uma realidade histórico-social chamada filosofia, que tradicionalmente persegue a verdade radical, tenho que enfrentar essa realidade para ver até que ponto ela é capaz de me dar essa certeza que necessito (Idem, 1985). É a partir, portanto, de nossa situação efetiva, a qual temos que “dar conta”, que nos vemos forçados a penetrar nessa filosofia que existe em nossa circunstância (Idem, 1985).      
  
Nesse sentido, a introdução à filosofia, antes de ser uma disciplina como a geometria, a química ou a lógica, é um empreendimento, uma tarefa, um quefazer. Ao invés de pensar a filosofia como um domínio de objetos, um método de acesso a eles e um conjunto de verdades enunciadas, “devemos apelar primeiramente a uma situação concreta, da qual é necessário partir.” (Idem, 1985, p. 18).

Essa situação concreta, mais ou menos problemática, é a facticidade na qual estamos inseridos, cuja estrutura precisamos conhecer de forma radical, rigorosa e de conjunto para que possamos nos afastar do cotidiano e nos reconduzir ao encontro de nós mesmos.

Não posso finalizar esse texto, cujo objetivo é comemorar os dois anos de vida do Cabeça, sem tocar em dois pontos.

O primeiro, é que o título da postagem não representa uma relação hierárquica entre vida e filosofia, mas apenas representa a ideia de que só podemos pensar sobre a vida se ela se apresenta, de alguma forma, problemática. E isso só pode ocorrer se, de início, assumimos nossa condição existencial e vivemos. Como diz Sartre, "o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define." Fatalmente, sentiremos a angústia como consequência da percepção da tensão entre o que somos de fato e o projeto de vida que intencionamos alcançar, a partir de valores éticos, políticos e estéticos bem definidos, o que, consequentemente, nos leva à busca da sabedoria, ou seja, à filosofia, fundamental para a superação dos nossos limites - excetuando-se a morte, claro.

O segundo, é que quando falamos em situação problemática, não emprestamos à expressão nenhuma conotação moral, no sentido de que uma situação problemática seja, necessariamente, má. Antes, nos referimos mais propriamente a desafios, metas, projetos, objetivos, que para serem alcançados requerem a mobilização de saberes, conhecimentos, procedimentos e atitudes.        

Por certo, ainda estou na superfície dessa tal "verdade radical" que a filosofia aspira, mas, ao menos já iniciei a escalada do "muro" (só pra lembrar do velho Platão) que nos separa do mundo verdadeiro, para além da "caverna" de preconceitos, medos e ignorâncias na qual nós, herdeiros dos grupos oprimidos, nascemos e que, graças à filosofia podemos superar.   

Zebé Neto
professor e blogueiro

Referência bibliográfica

MARÍAS, Julían. Introdução à filosofia. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1985.

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Na página FILOSOFAR está disponível o texto de Julían Marías que aborda a questão da filosofia como empreendimento, como tarefa ou um quefazer.