sexta-feira, 4 de maio de 2012

Trabalho ou emprego? A atividade alienada (e alienante) do professor

          Antes de compartilhar com vocês mais um texto sobre a série de reflexões sobre a condição de professor, gostaria de fazer alguns esclarecimentos:

1) Ontem pela manhã redigi e postei um texto às pressas, pois pensava em fazer menção a ele na Assembleia dos Professores da rede privada realizada ontem, dia 03 de maio. É que venho tentando me aproximar da identidade do professor reflexivo ou intelectual transformador da realidade, como  defendem importantes educadores da atualidade, como a portuguesa Isabel Alarcão, o suiço Philippe Perrenoud e o norte-americano Henry Giroux, e seria uma ótima oportunidade poder colocar para meus colegas minhas ideias.  Não o fiz, pois senti que ainda não era o momento. Faço aqui uma confissão: como muitos de nós, não fui preparado, tanto na educação básica, quanto no nível superior, para utilizar a palavra em público e fico super nervoso só em pensar em ir lá na frente e dizer o que penso. Um dos projetos que me coloquei esse ano foi o investimento na inteligência comunicacional (o que inclui tanto a escrita, que já estou exercitando aqui no Cabeça, quanto a oralidade), imprescindível para quem vem assumindo a identidade de filósofo, escritor e educador, como é o meu caso. Até a próxima assembleia vou ver se consigo desenvolver alguns procedimentos para o uso da palavra em público (aliás, uma das competências que pretendo ajudar meus alunos a desenvolver) e espero dizer alguma coisa, pois meu compromisso político me obriga a me posicionar diante das questões do meu tempo. Por enquanto, vou mandando minha palavra através do Cabeça Bemfeita.

2) Justamente por ter sido escrito às pressas, o texto apresentava  precisava ser revisto e aprimorado. É essa versão revista que hoje publico.

3) Novamente com relação a frequência das publicações do Cabeça Bemfeita: como minha vida está bem movimentada, não vou mais estabelecer um dia fixo para postagens de textos. Combinemos o seguinte: toda semana, em média, publicarei um texto novo. Qualquer mudança, avisarei.

          Um dado curioso e que tem tudo a ver com o texto que compartilho hoje com vocês: agora pela manhã, enquanto mexia no texto, a TV estava ligada na Rede Globo e o apresentador do Bom Dia Brasil,  Chico Pinheiro, no final do programa, ao se despedir disse: "Hoje é sexta-feira, é vida que segue!”. O que podemos ler nessa máxima de Pinheiro? Que o fardo da semana, período no qual trabalhamos (e no caso dos estudantes, período de aula) está terminando, e a "vida" finalmente surge com o final-de-semana, tempo em que estamos liberados das atividades rotineiras, repetitivas, cansativas e estressantes.
           Espero que as reflexões que farei possam  de alguma forma ajudá-los a responder a seguinte questão: a atividade que vocês realizam é melhor caracterizada como um trabalho ou como um emprego? 


Trabalho ou emprego? A Atividade alienada (e alienante) do professor


Aproveitando as comemorações (para a maioria, lamentações) do dia do trabalho, ocorrido na última quarta, dia 1º de maio, resolvi escrever sobre uma questão que há algum tempo vem me intrigando: nós, professores, somos “trabalhadores”ou “empregados”? Temos um "trabalho" ou um "emprego?"
            Partindo da concepção filosófica do trabalho e de sua realização histórica, notadamente a partir da emergência da sociedade industrial, defenderei a ideia de que a maioria de nós, que nos dedicamos à atividade de ensinar, merecemos muito mais sermos chamados de “empregados” do que de “trabalhadores”.
          Nesse primeiro texto discorrerei sobre a visão filosófica do trabalho, destacando-o como condição de liberdade e o conceito de práxis como atividade especificamente humana. Também abordaderei a visão histórica do trabalho, ou seja, a forma concreta como temos organizado as relações de trabalho ao longo do tempo. Finalizo essa primeira parte do artigo, trazendo algumas reflexões sobre o processo de alienação na sociedade industrializada.
          Na semana que vem, eu volto trazendo uma discussão sobre o processo de alienação na chamada sociedade pós-moderna e como percebo a inserção do trabalhador em educação nesse processo.

Visão filosófica do trabalho

O trabalho é apontado, ao lado da linguagem verbal, como a característica que distingue os seres humanos dos outros animais. Enquanto os outros animais estão inseridos harmonicamente na natureza, os seres humanos são capazes de transformá-la através do trabalho, possibilitando, assim, o surgimento da cultura. O trabalho, em sentido amplo de trabalho material e intelectual, é a ação transformadora da realidade dirigida por um projeto, ou seja, por uma antecipação da ação pelo pensamento, sendo, por isso, consciente, deliberada e intencional.
Ainda que num primeiro momento a natureza se apresente como destino, através do trabalho o ser humano supera os determinismos naturais, conseguindo sua liberdade. Por isso, a liberdade é o resultado da ação transformadora do ser humano sobre o mundo, de acordo com seus projetos.
Na filosofia, o termo práxis é utilizado para delimitar a especificidade da atividade humana, diferenciando-a dos outros animais.  Práxis significa a união indissolúvel entre teoria e prática, uma vez que, em toda ação humana sempre encontramos a teoria (conceitos, representações, explicações, justificativas, intenções, etc.), mas “também toda teoria, como expressão intelectual de ações humanas já realizadas ou por realizar, é fecundada pela prática.” (ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Moderna, 2006, p. 76)
Quando olhamos para a realidade, essa concepção que articula trabalho, cultura e liberdade, parece de outro mundo, pois no dia-a-dia percebemos que a maioria das pessoas estão presas a profissões pouco libertadoras e criativas (para nós, docentes, é só frequentarmos as salas de professores para constatarmos o desânimo, a apatia e o estresse). Na verdade, o trabalho só pode ser considerado libertador se o trabalhador não for explorado, “situação em que deixa de buscar a satisfação de suas necessidades para realizar aquelas que foram impostas por outros. Quando isso ocorre, o trabalho torna-se inadequado – e até um empecilho – à humanização: trata-se do trabalho alienado.”  (Idem, Ibidem, p. 76)


Visão histórica da trabalho
  

           Se fizermos uma retrospectiva histórica veremos que a visão que prevalece sobre o trabalho é negativa. Na Bíblia, a felicidade de Adão e Eva chega ao fim com o pecado original e a expulsão dos dois do Paraíso. A partir daquele momento teriam que “ralar” para se sustentarem com o "suor do próprio rosto". Sem falar do "trabalho" do parto que coube a Eva. A própria etimologia da palavra sugere tortura, sofrimento, labuta. Trabalho vem do termo latino tripaliare, do substantivo tripalium,aparelho de tortura formado por três paus utilizado para prender os condenados e para manter os animais difíceis de ferrar presos. Na Grécia e em Roma Antigas, enquanto o trabalho manual era desvalorizado, pois feito por escravos, a atividade teórica, própria dos homens livres, era considerada a mais nobre e digna dos seres humanos. Na Idade Média, mesmo havendo Santo Tomás de Aquino tentado reabilitar o trabalho manual, ao dizer que todos os trabalhos se equivalem, essa realidade não mudou muito, uma vez que vários textos medievais consideram a ars mechanica (arte mecânica) uma arte inferior.
Na Idade Moderna, com a passagem do feudalismo ao capitalismo, as técnicas são aperfeiçoadas, permitindo o processo de acumulação de capital e a ampliação dos mercados consumidores. O aumento da produção faz surgir os primeiros barracões, protótipos das futuras fábricas. Nesses espaços, os trabalhadores se submetem a nova ordem ditada pelo capital: a divisão do trabalho com ritmo e horários preestabelecidos. A partir de então o resultado do trabalho deixa de pertencer a quem o produziu, passando a produção a ser vendida pelo empresário, que se apodera dos lucros. Encontramos aqui a origem da alienação na sociedade industrial.
            O verbo alienar vem do latim alienare, “afastar”, “distanciar”, “separar”. Alienus significa “que pertence a outro”, “alheio”, “estranho”. Alienar é, portanto, tornar alheio, é transferir para outrem o que é seu.
            Nas sociedades nas quais os segmentos dominantes exploram o trabalho humano (regimes de escravidão, servidão, sociedades capitalistas), os indivíduos perdem a posse daquilo que eles produzem. Sendo assim,

                           “o produto do trabalho encontra-se separado, alienado de quem o produziu. Com a perda da posse do produto, o próprio indivíduo não mais se pertence: não escolhe o horário, o ritmo de trabalho, nem decide sobre o valor do salário, não projeta o que será feito, comandado de fora por forças estranhas a ele. Devido à alienação do produto, o próprio indivíduo também se torna alienado, deixando de ser o centro ou a referência de si mesmo.” (Idem, Ibidem, p.. 76-77)

Alienação na sociedade industrializada


            Com o desenvolvimento do sistema capitalista, a partir do nascimento das fábricas, nos séculos XVII e XVIII, a alienação tornou-se mais evidente. Até então o trabalho era realizado nas manufaturas, nas quais a atividade era predominantemente doméstica. Porém, com o surgimento das fábricas, cresceu


                           “a dicotomia concepção-execução do trabalho, ou seja, o processo de separação entre aqueles que concebem, criam, inventam e que vai ser produzido e aqueles que são obrigados à simples execução do trabalho.” (Idem, Ibidem, p. 76-77)

Com o desenvolvimento do sistema fabril, o norte-americano Henry Ford introduziu, no início do século XX, a linha de montagem na indústria automobilística. Frederick Taylor (1856-1919) levou adiante a concepção do processo de produção parcelado, estabelecendo os princípios do método científico de racionalização da produção, o taylorismo.

                          “Esse sistema, que visa a aumentar a produtividade e economizar tempo, suprimindo gestos desnecessários e comportamentos supérfluos [...], foi implantado com sucesso e logo extrapolou os domínios da fábrica, atingindo as demais empresas, os esportes, a medicina, a escola e até a atividade da dona de casa.”  (Idem, Ibidem, p.77)

                                                                 
                                                             ***


          É isso, amigas e amigos. Próxima semana volto com a segunda parte do artigo.  Por enquanto, fiquem com um dos letristas mais criativos do rap nacional, Gabriel, o Pensador, e sua bem humorada (e ácida) visão da instituição escolar e da nossa profissão.  
           Abraços e até semana que vem!



 Zebé Neto
filósofo, escritor e educador







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