quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Meu pai e a palavra



A publicação de hoje é uma homenagem a meu pai, que nos deixou há três anos, e marca a retomada das atividades do novo Cabeça Bemfeita, que agora é um espaço de reflexão e formação nas áreas da literatura, das histórias em quadrinhos e do cinema 

A última publicação do Cabeça Bemfeita, meu primeiro blog, foi impulsionada pela tristeza. No dia 30 de novembro de 2014, depois de passar alguns dias em coma, meu pai faleceu. Como forma de trabalhar a profunda dor que senti naquele final de ano, compartilhei, no dia 7 de dezembro, o ensaio “Da tristeza”, de Michel de Montaigne (1533-1592).


Hoje, dia 7 de dezembro de 2017, três anos após o último texto publicado, retomo as atividades do blog que transformou minha vida, desta vez movido pela felicidade de ter sido filho de Crenivaldo Regis Veloso, ou simplesmente Seu Du, um contador de histórias, a quem devo meu encontro com a palavra. A postagem de hoje, portanto, é uma homenagem a meu pai, através do qual tive a oportunidade de crescer num ambiente que favoreceu o meu contato com a arte, principalmente a música, a literatura e o cinema, além de marcar a volta do Cabeça Bemfeita.


Na primeira parte, exercitando um pouco a “pesquisa narrativa”, que venho realizando através de outro blog (o Portal de Educação Tecnológica e Artística), compartilho como herdei o gosto pela palavra com o “velho”, para, na segunda parte, apresentar o novo Cabeça.


Seu Du, a literatura e o cinema


Mais novo dos filhos homens da "dona de casa" Carmelita Regis Veloso e do pedreiro José Benedito Sales Veloso, meu pai teve a “sorte” (e, consequentemente, eu também) de não precisar trabalhar muito cedo, como os irmãos (as irmãs eram "preparadas" para casar), e pôde, com relativa tranquilidade, se dedicar aos estudos, finalizando, inclusive, um curso técnico (Estradas) pela antiga Escola Técnica Federal de Pernambuco (hoje IFPE), algo pouco provável, na época, para os indivíduos das classes menos favorecidas.


Além da sua formação escolar pouco comum para os padrões da realidade socioeconômica da minha família, vítima de uma sociedade que distribui desproporcionalmente sua riqueza entre os que muito têm e os que nada ou quase nada possuem, meu pai ampliou, durante a década de 1970, consideravelmente suas referências intelectuais e estéticas ao entrar para a SUDENE, onde passou a ter contato com artistas e intelectuais pernambucanos, a maioria oriunda da classe média que procurava no serviço público uma estabilidade econômica para se dedicarem a sua produção simbólica.


Todas essas referências fizeram com que meu pai, para utilizar uma linguagem platônica, saísse da caverna na qual estava preso e visse que a verdade e a realidade estavam lá fora, fora do mundo de ilusões, de imagens, de simulacros ao qual minha família, geração após geração, estava submetida. Meu pai rompeu com uma tradição de opressão política, econômica e cultural que impedia o desenvolvimento integral da minha família (e aqui, incluo o lado materno da minha família, em condições econômicas e culturais - me refiro a “cultura erudita” ou de “elite” - mais desfavoráveis, no agreste pernambucano) e se tornou consciente da sua condição política, bem como desenvolveu um rigor científico e senso estético apurado.    


Devo ao meu pai o contato com a boa música, o romance dos séculos XIX e XX e o cinema, principalmente os clássicos e o cinema nacional. 

Com relação à literatura, o estímulo começou desde cedo. Lembro de uma coleção de clássicos da literatura infantil que ele comprou, como “Chapeuzinho Vermelho”, “Os três porquinhos”, “Branca de Neve”, entre outros. No finalzinho da década de 1970, por volta dos cinco, seis anos, ficaram marcadas em mim as cores, as ilustrações, os desenhos das palavras. Mas, o que mais me impressionou foram as próprias palavras, a forma como, combinadas, traduziam enredos, com personagens que, em um determinado tempo e lugar, faziam/sofriam coisas a partir de certas razões e com algumas finalidades.  


Vale lembrar que, a despeito do pouco tempo efetivo que meu pai passou na infância comigo e meu irmão, uma  vez que ele passava o dia inteiro trabalhando para sustentar a família*, as poucas vezes em que ele leu para gente foram suficientes para plantar as sementes do que hoje é uma dimensão imprescindível do que sou e do que faço: a leitura.


Na pré-adolescência, quando surgiram as dúvidas naturais sobre questões relacionadas a sexualidade, consultei meu pai, que não teve dúvida: me entregou uma coleção de livros sobre sexualidade para que eu mesmo descobrisse o que me intrigava. Por falar nisso, enciclopédias e coleções as mais diversas eram com o velho. Lembro de uma estante de madeira, que ele mesmo fez**, onde dispunha suas coleções de Lima Barreto, Machado de Assis, Gilberto Freire, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, dividindo espaço com livros de divulgação científica, culinária, conhecimentos gerais, etc. A estante, que não era tão grande assim, ocupava lugar de destaque no nosso humilde lar de um cômodo: uma sala, uma cozinha, um banheiro, um quarto, mas com um quintal, onde pude viver uma infância subindo em árvore, jogando futebol e bola de gude, rodando pião, brincando de pega-pega e esconde-esconde, enfim, longe dos problemas econômicos e políticos característicos do fim da Ditadura Militar e início da redemocratização na Brasil. Nessa época não tinha jeito: sempre que acordava e saia da cama, dava de cara com a estante.


Já do final da adolescência aos primeiros anos da idade adulta, vieram os clássicos da literatura universal. Meu pai tinha uma coleção da Abril Cultural, intitulada “Os Imortais da Literatura Universal” (1971), que também ficava organizada na referida estante. Confesso que até o final da adolescência brincar na rua e, principalmente ouvir música, me seduziam mais que a leitura. No entanto, comecei a me aproximar de alguns títulos da coleção, como “Os Irmãos Karamázovi” (Dostoiévski) e “Retrato do artista quando jovem” (Joyce). Nessa fase, dois títulos foram decisivos para que eu me apaixonasse pela literatura: Dom Casmurro (Machado de Assis) e Os Buddenbrook (Thomas Mann). Lembro que eu ficava lendo e imaginando como seriam os lugares e tempos narrados. Muitas vezes recorria aos conhecimentos históricos para reconstruir o cenário da época. Os dilemas existenciais, morais, políticos, enfim, humanos, me faziam trabalhar meus próprios valores, sentimentos e concepções de mundo.


A palavra, que até mim chegou através do gosto do meu pai pela leitura, também está presente no cinema, outra linguagem que teve a contribuição de Seu Du para minha aproximação.  Meu pai foi o contraponto ao cinema comercial norte-americano. A partir da segunda metade da década de 1980, um dos meus programas preferidos era me reunir com os amigos do bairro de Campo Grande e irmos para o cinema. Como hoje, as salas eram monopolizadas pela indústria hollywoodiana. A diferença é que antes as salas estavam localizadas no centro da cidade,  como o Moderno e o Veneza, dois dos que eu mais frequentava, ao lado do São Luís, único que ainda resiste, ao passo que, atualmente, os shopping centers concentram a quase totalidade dos espaços para exibição. Meu pai ajudou na ampliação do meu olhar sobre o cinema ao me mostrar na grade de programação das redes estatais de televisão a produção de outras escolas cinematográficas para além da norte-americana, como a escola latino-americana, europeia, oriental, africana. Numa época sem internet, não posso deixar de mencionar a contribuição para a minha formação cinematográfica que tiveram as coleções de filmes, que meu comprava, promovidas pelos jornais e revistas semanais distribuíram, em meados da década de 1990, como comemoração pelo centenário do cinema.      


Além da influência através da literatura e do cinema, meu pai também deixou sua contribuição para meu contato com a palavra através de suas próprias narrativas. O velho gostava de narrar suas peraltices na infância e travessuras na adolescência. Politizado que era, a ditadura militar (1964-1985) sempre esteve presente nas nossas conversas. Não foram poucas também as discussões sobre seu principal ídolo político, Miguel Arraes. O olhar do velho brilhava sempre que ele falava que Arraes havia respeitado seu voto ao não renunciar ao cargo de governador de Pernambuco quando os militares tomaram o poder. Outros nomes da política também animaram nossos debates, entre eles Ulisses Guimarães, Dom Hélder Câmera (meu pai sempre considerou Dom Hélder mais um político do que religioso), Roberto Freire, Fidel Castro, Che Guevara, entre outros. O tom das discussões por vezes subia quando eu, já revelando minha tendência libertária, dizia que não via diferença entre ditaduras de direita ou esquerda e que o governo de Fidel era ilegítimo. Apesar de considerar que a igualdade e a liberdade devam caminhar juntas (é por isso que luto, para mim mesmo e para meus iguais), se tivesse que escolher entre as duas optaria pela liberdade, enquanto Seu Du ficaria com a igualdade. Enfim, meu pai é um dos eixos fundantes da minha conscientização política.  


E assim, mediados pela palavra, se passaram 40 anos de convívio com meu pai, onde aprendi muito e pude ensinar também, pois, a medida em que eu crescia e tomava contato com outras referências, ia questionando alguns valores e comportamentos mais conservadores do velho, possibilitando, assim, a constante reflexão e revisão dos nossos limites. Eu e meu irmão, através da influência do meu pai, tivemos acesso à informação e ao conhecimento elaborado sistematicamente pela ciência, criticamente pela filosofia e esteticamente pela arte, o que foi benéfico também para o velho que pôde colocar em questão e rever muitas das suas próprias concepções e posturas herdadas da nossa origem cultural, nas suas duas últimas décadas de vida, momento em que eu e meu irmão, a partir da cultura herdada, construímos nossas identidades, e meu pai, a partir da influência de novos padrões culturais desenvolvidos por mim e meu irmão, reconstruiu a sua.


No dia 30 de novembro de 2014, Seu Du, fisicamente, nos deixou, mas suas experiências e histórias, bem como seu gosto pela palavra, continuam vivas em mim e seguirei construindo e narrando, através das minhas próprias experiências, essas e outras histórias.


O Cabeça Bemfeita tem papel fundamental no meu cultivo da palavra, processo esse que devo ao meu velho, que me acompanha na minha tarefa diária de ir buscando as palavras certas que possam promover mais adequadamente a mediação entre mim, as outras pessoas e o mundo.            


O novo Cabeça Bemfeita


O blog surgiu, em 2012, como uma resposta a uma dupla necessidade: precisava de um espaço para sistematizar e organizar melhor as informações e conhecimentos que vinha acumulando desde 2010, quando passei a investir autodidaticamente na minha formação continuada, e também precisava me aproximar mais das tecnologias de informação, comunicação e conhecimento, uma vez que hoje, ainda que possamos criar situações de ensino e aprendizagem significativas apenas com o giz e a lousa (ou até sem isso, pois temos as principais tecnologias de todas, nossos corpos e nossas falas), essa ferramenta pode potencializar enormemente os processos formativos, não só d(x) educand(x)s, mas também d(x)s docentes


Em sua primeira fase (2012-2014), o Cabeça tinha o objetivo de ser um espaço onde eu pudesse organizar os conhecimentos que eu vinha construindo dentro das áreas que considerava (e ainda considero) imprescindíveis para a atividade docente: Filosofia, Arte, Ciência, Comunicação e Tecnologia.


Hoje, depois de um hiato de três anos, retomo as atividades do blog, mas com algumas mudanças, inaugurando uma nova fase: a de ser um espaço de formação em três linguagens que são fundamentais para mim, não só como profissional, mas, principalmente, como pessoa: literatura, histórias em quadrinhos e o cinema.


As áreas mencionadas acima (Filosofia, Arte, Ciência,...) continuam despertando minha atenção e sobre elas pesquiso e reflito no Portal de Educação Tecnológica e Artística (PETECA), blog voltado mais especificamente para a educação e a formação docente. Aqui trataremos especificamente da “arte da palavra”, manifestada de diferentes formas na literatura, nos quadrinhos e no cinema.


Antes das novidades, falemos das permanências. Tal qual a primeira versão do Cabeça, a atual permanece fiel à perspectiva da “cabeça bem-feita”, postura epistemológica defendida por Montaigne no início da modernidade e retomada por pensadores como Edgar Morin na contemporaneidade, segundo a qual é preferível pensar bem, ter critérios epistemológicos para pensar de forma rigorosa e autônoma (“cabeça bem-feita”), do que acumular, acriticamente, informações sem sentido e sem relações umas com as outras, nem muito menos com a vida concreta de que acumula muita informação (cabeça bem-cheia”).


Dentro dessa perspectiva, o novo Cabeça Bemfeita está estruturado em quatro páginas: uma de apresentação e uma para cada uma das três expressões objetos de nossas investigações (literatura, histórias em quadrinhos e cinema). Por sua vez, cada página dedicada às linguagens está assim estruturada: uma primeira parte onde apresentaremos um pouco da história, uma segunda onde os elementos das linguagens são apresentados e, por fim, uma terceira e última parte onde apresentamos autor(x)s da linguagem em questão com (x)s quais dialogamos e/ou com (x)s quais ainda dialogaremos.

Bem, é isso. Espero ter conseguido reunir nesta postagem as palavras adequadas para expressar o quanto meu pai é importante para quem hoje sou (obviamente que, do ponto de vista biológico, sem ele e minha mãe, nem eu e nem meu irmão existiríamos, mas falo aqui da existência simbólica ou espiritual) e ter dado o recado sobre a volta do blog.

Forte abraço e façamos nossa cabeça por aqui em 2018!

Zebé Neto
Professor, pesquisador e escritor 

* Apesar da sua consciência política e de classe, aliada a um refinado senso estético, as condições concretas do velho não permitiram que ele superasse, de início, a herança patriarcal e machista segundo a qual cabe à mulher cuidar das crianças e ao homem ser o provedor, pensamentos e posições colocadas em questão e superadas no decorrer dos anos enquanto eu e meu irmão crescíamos e nos conscientizávamos no ambiente dialógico e democrático inaugurado por meu pai. 

** Meu pai sempre foi muito hábil com as mãos, talento que irei explorar no curta-metragem "Gambiarra", uma representação do velho em texto e imagens que estou produzindo para meus filhos, Caio e Ravi, que conviveram pouco, mas intensamente, com o avô.

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